
Pensando o subterrâneo das relações: Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes e as cartas com desenhos
Thinking about underground artistic links: Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes and their letters with drawings
Renata Oliveira CaetanoUniversidade Federal Juiz de Fora, Brasil
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> autores
Renata Oliveira Caetano
Doctora en Artes por el Programa de Pós-Graduação en Artes com beca PDSE/CAPES (UERJ/2017). Profesora de Artes Visuales del Colégio de Aplicação João XXIII y del Programa de Pós-Graduação em História (UFJF). Desarrolla investigaciones en el área de História del Arte y de la Cultura, de los siglos XX y XXI, com especialización em colecciones, manuscritos de artistas, relaciones entre el diseño y la escritura, arte y educación.
Recibido: 14 de agosto de 2024
Aceptado: 4 de diciembre de 2024
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional.
> como citar este artículo
Renata Oliveira Caetano; “Pensando o subterrâneo das relações: Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes e as cartas com desenhos”. En caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 25 | Primer semestre 2025, pp. 126-138.
> resumen
Desenvolvida desde 2013, esta reflexão parte de uma investigação sobre a presença de desenhos em manuscritos de artistas, buscando entender como a arte permeava as relações estabelecidas entre os escritores Murilo Mendes e Mário de Andrade com o artista Cícero Dias, no começo do século XX. Partimos de uma pesquisa exploratória cujo procedimento foi dividido entre o bibliográfico e o documental. A partir da análise de dados biográficos, desenhos e escrita epistolar, buscamos compreender o uso de imagens em cartas, tomada como um espaço de ação artística que expande seus limites funcionais.
Palabras clave: cartas com desenhos, redes de sociabilidade, Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes
> abstract
Developed since 2013, this article is based on research on the drawings contained in the manuscripts of the writers Murilo Mendes and Mário de Andrade, as well as in those of the artist Cícero Dias. The goal is to understand how art permeated the relationships established between them at the beginning of the 20th century. We begin with an exploratory study divided in two sections, the first being a bibliographical one and the second a documentary one. Through the analysis of biographical information, drawings and epistolary writings we seek to understand how images were used in letters, considered in this article as a space of artistic action that expands its functional limits.
Key Words: letters with drawings, artistic networks, Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes
Pensando o subterrâneo das relações: Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes e as cartas com desenhos
Thinking about underground artistic links: Cícero Dias, Mário de Andrade, Murilo Mendes and their letters with drawings
Renata Oliveira CaetanoUniversidade Federal Juiz de Fora, Brasil
Esta reflexão, desenvolvida desde 2013, parte de uma investigação sobre as relações de sociabilidade intelectual e a presença de desenhos em manuscritos de artistas.[1] Tal proposta, com desdobramento em diferentes campos de conhecimento, articula outras escalas de análise para esses desenhos, que nem sempre são vistos como elementos centrais em estudos realizados pela historiografia da arte.
O problema apresentado neste artigo deriva da relação intelectual e de amizade estabelecida entre o artista Cícero Dias (1907-2003), o escritor Mário de Andrade (1893-1945) e o poeta Murilo Mendes (1901-1975). Para compreender essas conexões, buscamos inicialmente os documentos que compõem o Arquivo e a Coleção Mário de Andrade, parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiro da Universidade de São Paulo. Ali, encontramos algumas cartas com desenhos em meio a escrita, o que nos chamou a atenção de imediato.
A observação dos exemplares enviados a Mário de Andrade por artistas como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Cícero Dias evidenciou um comportamento epistolar distinto neste último. Essa constatação gerou as seguintes questões: Como a presença de desenhos em cartas permeou a rede de sociabilidades estabelecida entre Cícero Dias, Mário de Andrade e Murilo Mendes? Quais as características distintivas das criações de Cícero Dias em missivas, que o diferenciam dos demais artistas?
Uma das hipóteses levantadas sugere um novo percurso analítico para documentos que revelam a conexão entre escritores e artistas, convidando-nos a observar mais atentamente em que medida a arte permeava essas relações. Nesse sentido, outra hipótese é que Cícero Dias apresentava uma característica única, uma inquietação artística presente não apenas em sua produção amplamente conhecida, mas também em outros aspectos de seu cotidiano. Dias transportava seu raciocínio artístico para sua vida, e as cartas se revelam uma ampla manifestação disso.
Nosso interesse, portanto, reside no exercício do compartilhamento de um tipo de pensamento visual, buscando verificar como artistas conectam sua produção à vida. Assim, este artigo objetiva encadear uma breve análise sobre três importantes nomes da arte e da cultura brasileira do início do século XX. Tal exercício, articula dados sobre os escritores, o artista e seus desenhos, majoritariamente realizados em cartas trocadas entre si.
Nosso interesse se concentra, principalmente, na relação entre quatro elementos: os dados biográficos que se cruzam, o suporte, o desenho e a escrita de artistas. Nesse contexto, as cartas emergem como um lugar privilegiado para observarmos o registro de um gesto, consolidado pelo traço. Um gesto que é íntimo, mas que, simultaneamente, visa a troca. Diversas publicações internacionais se dedicaram ao tema,[2] como as de Chu (1976), Bonnat (1986), Ayala e Guéno (1998), Germain e Coron (2000), Essig e Schury (2003) e Kirwin (2005), entre outros autores que exploraram o estudo de cartas com desenhos de artistas.
Em sua maioria, tanto as publicações quanto os acervos onde esses documentos se encontram, classificam tais ocorrências como “Cartas Ilustradas”. A interpretação desses manuscritos oscila entre duas perspectivas. A mais comum delas considera os desenhos, presentes entre os escritos epistolares, como elementos que embelezam o manuscrito. A segunda perspectiva compreende tais informações gráficas e visuais como algo inusitado, que agrega valor monetário aos documentos. Isso os torna altamente disputados em leilões.
Essas interpretações revelam uma ambiguidade na classificação de cartas que combinam escrita e imagem. Como observamos, as instituições tendem a agrupar esses itens, aparentemente semelhantes, em um conjunto denominado “Cartas Ilustradas”. Entretanto, a análise da materialidade desses documentos revela que suas proposições visuais transcendem a ideia de subserviência das imagens em relação às mensagens escritas.
Somente ao ler um artigo da historiadora Marta Rossetti Batista é que nos deparamos com o único texto que aborda, ainda que brevemente, a presença de desenhos em cartas de forma diferente. O acervo de Mário de Andrade, repassado para a USP no final dos anos 1960, ainda apresentava lacunas investigativas na década de 1980. A pedido do escritor, parte de suas cartas permaneceu lacrada por 50 anos após sua morte, limitando as investigações aos documentos disponíveis. Dentre as cartas liberadas para pesquisa, estavam algumas que foram apresentadas no artigo de 1981 e posteriormente se tornariam objeto de nosso estudo. Naquele momento, segundo a autora:
Por força de disposição testamentária, a maioria da correspondência recebida por Mário de Andrade ainda se encontra lacrada. Entre as cartas que permaneceram acessíveis, há um tipo especial: aquelas enviadas pelos artistas plásticos, principalmente os da época modernista. Cartas com desenhos, ou desenhos com «recados» mais ou menos extensos para Mário de Andrade […].
Nestas cartas-desenhos, artistas como Di Cavalcanti, Brecheret, Anita Malfatti ou Cícero Dias, lançam mão de uma dupla linguagem. Primeiro, a que lhes era própria, o desenho; depois, necessitando completar o «recado» – ou para se comunicar na mesma linguagem que o escritor – utilizaram a escrita, na qual nem sempre se expressavam com facilidade.[3] (grifo nosso)
Vemos aqui, aqui uma nomenclatura mais precisa para abarcar esses tipos de ocorrência. A denominação “cartas com desenhos” mostra-se abrangente e nos parece englobar tanto cartas com ilustrações que fazem referência direta ao texto, quanto cartas em que os desenhos assumem uma função autônoma. Nesse último nicho é ainda possível identificar duas importantes vertentes: em algumas missivas, segue fixado o pensamento do artista, atravessado por visualidades; mas em outras o que se constrói é uma espécie de embrião daquilo que mais tarde viríamos a conhecer como arte postal. A nomenclatura «cartas-desenhos», proposta por Batista e adotada inicialmente por nós, parece reconhecer essa distinção.
Após anos de pesquisa, notamos, portanto, que o conceito de «cartas-desenhos» se aplica a casos específicos, como, por exemplo, a carta de Anita Malfatti em colaboração com John Graz.[4] No entanto, identificamos outras ocorrências que, embora demonstrem níveis avançados de experimentação, visam primordialmente à manifestação do pensamento do artista por meio de elementos visuais. Essas missivas, permeadas por visualidades, ao nosso ver podem ser consideradas «cartas com desenhos», como veremos adiante.
Nesse contexto, o corpo da mensagem pode ser compreendido como uma manifestação de si para o outro, demarcando, segundo Foucault, uma presença “imediata e quase física” de quem está distante.[5] A escrita em cartas possibilita um “dar-se a ver” ao interlocutor. As letras traçadas tornam-se “vivas marcas do ausente”, revelando o “cunho autêntico da sua pessoa”. Os elementos aqui articulados revelam outro aspecto dessas marcas: um “gesto performático” associado à informação verbal, expressando as nuances de um diálogo que transcende os caracteres.[6]
Nesse sentido, o uso de desenhos demarca um espaço de ação que expande os limites funcionais da carta. Ele retira a missiva de sua função de ser objeto de escrita, revisa seu padrão de visualidade e transcende a simples troca de amenidades entre amigos. A incorporação de imagens como lugar de ações poéticas oferece uma narrativa transformadora para o destinatário. Seus olhares e leituras se modificam, percebendo como a ação artística cria tensão no espaço visual da epistola.
Remetente e Destinatários
A carta, antes de ser o categoria de documento que nos interessa enquanto objeto de pesquisa, é um gênero textual que possui algumas particularidades no tipo e na estrutura, ainda que por vezes apresente flexibilidade nas formas e nos usos. Enquanto objeto, deriva etimologicamente do papel preparado para a escrita. Por isso, seguindo a estrutura básica de “saudação, corpo do texto e despedida”,[7] delimita também o seu grande objetivo: o de ser uma mensagem a fim de fazer comunicar pessoas fisicamente distantes.
Pode-se escrever notícias de forma objetiva, mas pode-se também escolher fazer relatos pessoais, algo que abre espaço para a expressão mais subjetiva. Assim, a despeito das mãos pelas quais passaram, elas nos proporcionam, nos dias de hoje, a possibilidade de novas leituras, como propõe Lejeune,[8] a partir de três aspectos: a carta como objeto (que se troca); a carta como ato (que coloca as personalidades em cena); e, por fim, a carta como texto (que pode vir a ser publicado).
Pensando a missiva como um objeto e, em um recorte mais específico, tais manuscritos que apresentam desenhos em meio ao texto, nos voltaremos agora à compreensão das relações estabelecidas entre o artista Cícero Dias e seus dois destinatários. Dias nasceu na cidade de Escada, localizada no nordeste do Brasil. Ao longo de sua vida artística, transitou por diferentes vertentes da pintura, sendo que aqui nos interessa principalmente a década de 1920, marcada pelo surrealismo e toques regionalistas, como apontado por Grando:
Não cabe dúvida de que Dias se aproxima da «regionalidade» de modo etimológico, como decantação de mundo a partir de meios plásticos. Pode-se dizer que ele desconfia do primado da regionalidade, ou melhor, pesquisa sua inteireza, mas pela via que confere um papel ativo aos próprios elementos constitutivos da linguagem artística e constrói um espaço dotado de leis próprias.[9]
Esse espaço constituído por suas próprias leis aparece com muita força nos desenhos e aquarelas do início de carreira do artista e leva a uma de suas obras importantes:[10] o painel Eu vi o mundo e ele começava no Recife pintado entre 1926 e 1929. Tecnicamente inovador por sua elaboração em papel kraft com cola de peixe e gesso, o painel causou grande repercussão por seu conteúdo imagético. Mattar[11] reforça que o painel “é profuso, confuso e dramático, mesclando memórias do engenho, do carnaval de Olinda, do Rio de Janeiro, imagens de cordel, lembranças românticas e devaneios eróticos, tudo simultâneo e onírico, real e irreal”.
Nesse sentido, a profusão de cartas com desenhos, produzidas por Cícero Dias entre 1928 e 1931, não parece ser mera coincidência. Para além disso, em muitas delas vemos os mesmos elementos observados em “Eu vi o mundo…”: pouca conexão entre as imagens e o texto, rostos ou pessoas de corpo inteiro, espaço visual confuso composto por muitas camadas de informação, entre outras características.
O ambiente artístico do Rio de Janeiro e o perfil surrealista podem ter sido fatores determinantes para a aproximação entre Cícero Dias e o poeta Murilo Mendes. Nascido em Juiz de Fora, Mendes se mudou para o Rio de Janeiro no início dos anos de 1920. Para a ele a visualidade era um elemento fundamental algo expresso, inclusive, em seus escritos. É marcante sua relação de amizade com artistas no Brasil e na Itália, onde atuou como Adido Cultural, crítico de arte e professor. Dessa convivência, formou-se uma coleção singular, que se encontra no Museu de Arte Murilo Mendes, na cidade de Juiz de Fora.
O outro destinatário das cartas é Mário de Andrade, figura central da cultura brasileira, com atuação marcante na literatura e em outros campos. Muitas pessoas gravitavam em torno dele, interessadas em fazer avançar uma determinada proposta de Modernismo no Brasil. Destacamos não somente sua atuação como escritor, mas também como crítico de arte e colecionador. Ao lado disso, temos o interesse dele pelo desenho, algo manifestado tanto em seus textos quanto em sua coleção que se encontra no IEB/ USP.
Nosso mergulho no diálogo epistolar entre Cícero Dias, Mário de Andrade e Murilo Mendes revela desenhos, aquarelas e cartas com desenhos presentes na coleção de Andrade ou, que pertenceram à Mendes, mas que estão na coleção do escritor paulista. É importante ressaltar que Cícero Dias, natural do Nordeste do Brasil, não fazia parte do círculo inicial de amigos de Mário de Andrade, concentrado em São Paulo. Sua trajetória o levou ao Rio de Janeiro para cursar Arquitetura. Lá se aproximou de um efervescente grupo de intelectuais, como Murilo Mendes, Ismael Nery, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira e Villa-Lobos, que transformavam os bares do centro da cidade em palco de debates. Imerso nesse ambiente, Dias decidiu abandonar a Arquitetura e dedicar-se às Artes.
Estudos indicam que o escritor Manoel Bandeira, em 1928, teria sido um dos primeiros a mencionar Cícero Dias a Mário de Andrade. Bandeira relatou a Andrade ter visto a exposição do jovem artista pernambucano no Rio de Janeiro, destacando sua arte profundamente sarcástica e deformadora.[12] A partir daí, teria se iniciado a aproximação entre Dias e Andrade, com a troca de cartas entre 1928 e 1931. Curiosamente, a correspondência teve início antes mesmo de um encontro pessoal. Cícero dispensava apresentações formais, acreditando que “as afinidades e o caráter humano trabalhavam positivamente [a seu] favor”.[13]
Em sua primeira tentativa de encontro, Cícero visitou o hotel onde Mário estava hospedado durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, mas ambos se desencontraram. Cícero deixou um cartão de visitas para Mário – um gesto aparentemente trivial, como tantos outros que acabariam arquivados pelo escritor. No entanto, o cartão de Cícero se difere: transformado em um bilhete improvisado, ele explicava o desencontro e buscava agendar um novo horário. O traçado da letra manuscrita rearranja graficamente o espaço visual do cartão, com a escrita caracteristicamente desorganizada de Dias. Nele lemos: “Eu estive aqui depois do meio-dia porque só recebi seu bilhete na hora do almoço. Você veja estes desenhos. De noite você está em casa? Eu vou lhe telefonar lá para 7 horas. Foi pena eu só ter recebido sua carta tão tarde. Adeus até de noite, Cícero”.[14]
Embora pareça um gesto trivial, o cartão de Cícero sinaliza algo peculiar: a entrega de «desenhos» para o escritor e colecionador. O Catálogo Eletrônico do IEB, em nota, esclarece que a data do bilhete, anterior a 28 de novembro de 1928, foi presumida a partir da publicação da crônica no Diário Nacional, em 18 de dezembro do mesmo ano. A nota de pesquisa ainda ressalta a dificuldade em determinar qual desenho da Coleção teria sido dado nesse encontro, visto que Cícero tinha o hábito de anexar trabalhos às suas cartas, e seus desenhos compõem uma parte significativa da coleção de Mário de Andrade.
O tão esperado encontro, no entanto, não reproduziu a fluidez da comunicação que já se estabelecia por meio de cartas e desenhos. Cícero não se considerava tímido, mas Mário, com seu olhar perspicaz, captou uma postura diferente no artista, buscando compreendê-lo em sua totalidade. A crônica que descreve esse encontro, publicada inicialmente no Diário Nacional e posteriormente no livro Turista Aprendiz, revela as observações de Mário:
Cícero Dias entrou, ficou muito desapontado. Afinal nos abraçamos e retomamos a existência de nossas cartas. Inteiramente está claro que inda não porque o Cícero Dias das cartas era um bocado mais magro e mais alto. Lembro-me também que sentava duma só vez. Este Cícero Dias sem cartas é diferente sobretudo nisso: anda e senta aos pedaços. Todo ele é aos pedaços aliás, menos a arte. Por enquanto há mesmo um contraste orgânico entre a arte e o ser Cícero Dias. É quase ainda o que a gente chama de “meninão”. Nem sei se passou da casa dos vinte. E como entidade exprime bem essa curteza dos anos vividos. Mas na arte não. E apresenta essa experiência antiga que é na fatalidade individualista.[15]
Mário, impressionado pela profundidade da produção artística de Cícero, mesmo o pernambucano sendo ainda jovem, observou a complexidade presente tanto em seus desenhos quanto em suas mensagens, como veremos mais adiante. Nos escritos de Cícero, fica evidente a profunda admiração por Mário de Andrade, não apenas como amigo, mas também como intelectual. Seus diálogos abordavam desde questões prosaicas do dia a dia até reflexões sobre as relações interpessoais, com destaque para as frequentes menções a Murilo Mendes, e, principalmente, sobre as obras de ambos.
Laisser l’initiative aux mots
Certa vez, Cícero Dias comentou: “Eu pensava no Mallarmé, que dizia: Laisser l’initiative aux mots. Deixei a iniciativa à pintura”.[16] Impulsionado por essa convicção, realizou sua primeira exposição em 1928, no Hall da Policlínica, com o apoio de nomes como Graça Aranha, Di Cavalcanti, Murilo Mendes e Ismael Nery.[17] Em busca de uma produção artística livre, Cícero abandonou a Escola de Belas-Artes, algo fomentado pelo desejo de criar um mundo particular, no qual ele próprio, o artista, figurava como um dos personagens centrais. A mostra repercutiu positivamente, e Josué de Castro sintetizou sua percepção de Cícero Dias: “a pintura de Cícero Dias não é uma obra mal-assombrada. É a expressão racional de um temperamento”.[18]
Seu temperamento, porém, transcendia a pintura. As 9 cartas e 12 desenhos enviados a Mário de Andrade, presentes na coleção que leva o nome do escritor, formam um conjunto único. Cícero concebeu um espaço epistolar singular, no qual a escrita e o desenho se entrelaçam, revelando a natureza híbrida de seu pensamento. Sua arte, coerente e multifacetada, extrapola os limites das telas, fundindo-se à vida por meio de um pensamento poético que se manifesta com igual intensidade em qualquer suporte, independente de sua função.
Em nossa pesquisa, encontramos cartas com desenhos, datadas entre 1928 e 1931, endereçadas a Mário de Andrade, Lasar Segall, Murilo Mendes e Carlos Leão. A recorrência da prática epistolar, independentemente do destinatário, sugere a intrínseca relação entre a arte e a vida na trajetória do artista. Conforme já destacamos essa profusão de documentos na década de 1920 pode ter relação direta com a elaboração de seu painel “Eu vi o mundo…”. Pensamos ser possível que as pesquisas, pensamentos e emoções tenham transbordado da pintura sobre papel pardo, em inquietações lançadas em cartas repletas de desenhos e envelopes.
Há também uma carta de 1951 para Tarsila do Amaral,[19] escrita em colaboração com Blaise Cendrars e Fernand Léger, além de cartas enviadas à sua filha Sylvia[20] na década de 1970, as quais se distinguem das elaboradas na década de 1920. Talvez essa prática epistolar, independentemente do momento que vivia, revele a necessidade de Cícero Dias em transitar entre diferentes linguagens. É notável, porém, a frequência de cartas-desenho endereçadas a Lasar Segall, Murilo Mendes e Mário de Andrade próximo ao período de criação de Eu vi o mundo….
No caso do escritor paulista, é importante ressaltar que os itens que fazem parte da Coleção Mário de Andrade, aparecem hoje divididos no IEB. Alguns estão no Arquivo, junto aos documentos do escritor e outros estão no Acervos de Artes Visuais. Há indícios de que o escritor teria feito algo em relação a essa divisão, pois ele separou o desenho de uma das cartas da artista Anita Malfatti, deixando o texto no Arquivo e a única folha desenhada no Acervo de Artes, por exemplo. Mas também, há elementos que nos levam a crer que houve uma separação proposta pelos pesquisadores da USP, quando a coleção foi adquirida pela Universidade.
Independente disso, quando fazemos um cotejamento visual do conjunto de cartas de Dias, podemos pensar que tudo aquilo que se apresenta dentro dos padrões andradianos de arte fica fora do lacre. Ficaram lacradas aquelas onde temos uma interação mais desregrada e experimental entre escrita e desenho. Nesse sentido, é perceptível uma dicotomia entre os itens, uma lógica que vemos ser aplicadas a outros artistas também. No entanto, o que parece reger essa separação não é nem a ideia de carta nem a ideia de desenho, como poderíamos pensar a partir da própria especificidade desses itens. Mas sim, vemos com clareza o seguinte raciocínio: o que é mais próximo da escrita fica no Arquivo. Aquilo que é mais próximo da pintura e do terreno plástico fica fora e consequentemente vai para o Acervo de Artes Visuais. Ainda temos itens que são marcados por uma grande peculiaridade: as cartas com desenhos que aparentemente pertenceram ao Murilo Mendes, mas que constam na coleção de Andrade.
A presença de itens de outras pessoas na Coleção e Arquivo de Mário de Andrade é recorrente. Segundo Tele Porto Ancona Lopez, Mário de Andrade organizava os manuscritos de outros escritores em uma estante no hall do andar superior de sua casa.[21] Seus amigos frequentemente lhe confiavam documentos para que fossem guardados, mas, apesar da organização, não havia listagens dos itens.
A falta de registros sobre a origem de alguns itens na Coleção e Arquivo de Mário de Andrade dificulta a compreensão das decisões do escritor em relação ao seu acervo, bem como o rastreio dos objetos. No entanto, são alguns os itens que envolvem Cícero Dias, como o desenho «Cabeça de Velho», dedicado a ele por Guignard; o desenho que o pernambucano ofereceu a Manuel Bandeira; e as cartas-desenho destinadas a Murilo Mendes, todas presentes na coleção de Mário de Andrade.
Dados do IEB indicam que, no final da década de 1920, a Coleção de Mário de Andrade passou a incorporar trabalhos de artistas do Rio de Janeiro, provavelmente por intermédio de escritores como Manuel Bandeira, Antônio Bento e Murilo Mendes. Já vimos que a aproximação de Cícero Dias com o escritor paulista aconteceu em 1928, quando começaram a trocar cartas, sendo que, um elemento fundamental desse diálogo era a aproximação entre o desenho e a escrita, proposta por Dias.
Um de seus desenhos na coleção de Mário de Andrade destaca-se por uma mensagem em seu verso. Nela, com letra contida e bem delineada, Murilo Mendes escreve no canto superior esquerdo: “Pro Mário de Andrade, mando este desenho deste grande primitivista brasileiro (?). Cícero Dias. desconfiando que você gostará, etc. Com um abraço do Murilo Mendes. Rio – 1928”.[22]
A presença de um desenho de Cícero Dias com mensagem de Murilo Mendes na coleção de Mário de Andrade sugere que, além do envio direto de obras por Dias, havia intermédio entre escritores para a transferência de trabalhos. Murilo Mendes pode ter agido com a intenção de promover a obra de Dias junto a Andrade ou, simplesmente, considerado o desenho mais adequado à coleção do paulista.
Ao estudar a Coleção de Murilo Mendes, notamos algumas ocorrências que apontam para o fato de que o poeta não era apegado aos objetos, pois guardou durante anos desenhos de Ismael Nery, repassando-os à família após morte do artista. Manteve poucos consigo. Já o fato de atualmente não constar nada de Cícero Dias em seu conjunto não pode ser creditado ao desapego do poeta, pois sabemos que muitos itens foram vendidos pela família após sua morte. Contudo, o fato de nas cartas para Mário, Murilo ter sido citado algumas vezes por Cícero, somente reforça que eles três tinham um diálogo constante.
Estas máquinas de escrever são muito concorrentes
Murilo Mendes nos fornece outra situação quando o assunto são as cartas com desenhos de Dias. Já sabemos que Mendes repassava trabalhos do artista para Mário de Andrade. Contudo, há na coleção do escritor paulista duas missivas entre as cartas de terceiros que originalmente pertenciam ao poeta. Também escritas em 1930, uma é manuscrita e a outra datilografada e nos dão elementos importantes para refletir sobre a postura artística de Cícero Dias em contexto epistolar.
A carta com desenho manuscrita, datada de 19 de dezembro de 1930, conta com duas folhas dirigidas ao “caro Mendes pessoa fina e invulnerável!”.[23] Trata-se de um objeto com características peculiares dentro do grupo de Dias, pois os escritos acontecem de forma menos estruturada, em relação às cartas de Mário de Andrade. Espalhando-se de forma a ocupar uma boa parte do papel, vemos inclusive o texto, por vezes, acontecer na diagonal. Sua composição visual conta com alguns desenhos e mais espaços vazios entre texto e imagem, assemelhando-se a um caderno de notas.
O artista começa seu texto, parabenizando o escritor por ter ganhado o Prêmio de Poesia Fundação Graça Aranha, que, segundo suas memórias, foi dado ao “poeta Murilo Mendes, a romancista Rachel de Queiroz e ao pintor Cícero Dias[24] […] por trabalhos realizados em 1930. […] No entanto, o anúncio do prêmio só ocorreu em 1931”[25] havendo fotos que registram o encontro dos três e uma matéria publicada na Revista Para Todos em 20 de junho de 1931.
Na carta, o artista cita o editor Álvaro Moreyra no que se refere à publicação do retrato de Murilo Mendes na Revista Para Todos, [26] reiterando: “Você sabe eu fiz seu retrato já há uns 18 dias, mas [rabisco que encobre uma palavra] só agora o Alvaro publicou”. De fato, ele se refere ao número 627 da Revista Para-Todos, publicado em 20 de dezembro de 1930. A partir da frase “Não sei se você gostou, note!!!”, passa a uma explicação visual sobre suas escolhas acerca da construção da imagem do amigo.
Assim, abaixo da primeira parte de texto, há dois desenhos nomeados pelo artista como “Fig:n:I” e “Fig:n:II”. Deles saem setas que indicam um texto escrito na diagonal: “Esta bunda era colocada sobre a sua cabeça, mas o Álvaro pediu para eu não deixar devido as famílias dos sócios do Para-Todos. Então apareceram umas caras nas duas faces da bunda como você vê na figura no. 2. [grifo no original].”
Ao observarmos a imagem publicada na revista, percebemos que as figuras I e II da carta são, na verdade, um pequeno detalhe do retrato. A tal “bunda” sobre a cabeça do poeta parece ser algo jocoso entre os dois amigos bem próximos; no entanto, prevalece na versão publicada uma enxurrada de faces que saem a partir da testa de Murilo Mendes. Feito isso, Cícero atende ao pedido de Álvaro Moreyra e não trabalha no sentido de afrontar as famílias leitoras da revista (Figs. 1 e 2).[27]
No verso da folha, oferece-nos uma página onde os desenhos acontecem junto ao texto, mantendo certo espaço entre os acontecimentos gráficos. O artista usa de brincadeiras e expressões de conteúdo informal, que somente poderiam dirigir-se a um amigo, para construir suas cartas e, assim, nos apresenta um espaço de retroalimentação entre imagem e palavra, provando que esta última “não é o único contexto, o único resultado, a única transcendência da letra. As letras servem para compor palavras? Sem dúvida, mas também para algo mais. O quê? […]”.[28] Poderíamos pensar nos efeitos visuais da escrita quando conjugada com o desenho? Ou ainda tão simplesmente no caráter plástico da escrita ressaltado e apreciado por Cícero Dias? De toda forma, esse artista nos prova que existe um lugar onde as fronteiras se diluem, lugar no qual “a imagem e texto se encontram, sendo que, ao mesmo tempo que a escrita explora sua visualidade, a arte restituiu à escrita sua materialidade, sua qualidade de ‘coisa desenhada’”.[29]
É possível dizer que, nos exemplares de Cícero Dias, não temos desenhos ou escritos, mas sim uma única coisa nascida da mescla inquieta dos dois. Na carta datilografada de 1930, teremos a confirmação desse raciocínio, nas palavras do próprio artista.[30] Percebemos inicialmente que ela tem o mesmo tipo de papel e a mesma tinta azul de outras cartas datilografadas do artista. Temos uma grande parte datilografada, em seguida um trecho escrito à mão e, na metade inferior esquerda, um desenho feito a nanquim e, ao lado, a assinatura, local e ano. Tudo feito, aparentemente, com a mesma caneta da escrita.
Cícero começa da seguinte maneira: “Murilo, O Mario me mandou esta carta para eu lhe entregar. Você veja que ele gostou dos poemas”. Temos indícios de opiniões trocadas entre obras dos escritores, intermediadas pelo artista. Ele pergunta ao poeta o que há de novo e comenta o recebimento do “Almanach dos Açores”.[31] Em seguida, o artista passa a notícias de amigos em comum – são citados os artistas Ismael Nery e Di Cavalcanti, o arquiteto Gregori Warchavchik, o político Cristiano Machado, o poeta Manuel Bandeira e o diretor da Revista Para Todos, álvaro Moreyra. Aqui, o artista faz referência ao retrato que havia feito de Murilo Mendes, que foi publicado na revista posteriormente, conforme apresentamos.
Continua a escrita tratando de assuntos diversos, como o Mangue, declarando ser esse local uma “virtude carioca”.[32] Passa para a política e destaca algo sobre um poema de Mendes enviado para Manuel Bandeira, manifestando vontade de lê-lo. “Penso que penso”, escreve o artista para em seguida perguntar: “Murilo você o que manda dizer-me sobre tudo aí? POLITICAMENTE? PARTICULARMENTE? ANALITICAMENTE? FISICAMENTE? EXTRAORDINARIAMENTE?” (Fig. 3).
O sotaque forte pode ser percebido, algo que torna a escrita melodiosa. Até aqui, a missiva poderia ser considerada um documento como tantos outros semelhantes. No entanto, em seu trecho final, o pernambucano abandona a máquina e resolve escrever uma frase à mão, acompanhada de um desenho. Este, por sua vez, dá destaque ao canto inferior esquerdo, apresentando-nos provavelmente um dia qualquer no Mangue. Notemos a sugestão de uma mesa-redonda e de uma figura que aparentemente é um homem sentado em uma cadeira. Ele tem a sua mão apoiada na mesa e observa uma garrafa com um rótulo, onde se lê “GIN”. Essa garrafa tem dois detalhes nas laterais semelhantes a duas asas. Ao lado da cadeira, vemos uma mulher nua, com uma flor sobre o ventre. Atrás dela, há uma parede com uma janela de correr horizontal. Como se fizesse uma quina com outra parede, vemos no outro lado da “casa” uma janela diferente da primeira, com uma pequena sacada e um parapeito adornado. Ao lado do desenho, temos a assinatura, o local e a data e, acima disso, lemos:
Esta carta estava chata porque na máquina a gente nunca pode estender espírito com todas as suas faces estas maquinas de escrever são muito concorrentes.
cicero dias / Rio / de / Janeiro / 1930 (Grifo nosso).[33]
Por várias vezes, Cícero Dias deixaria claro que não seguia as ordens naturais das coisas. Após ter acompanhado, por meio de alguns objetos, um tipo de comportamento epistolar, até certo ponto desafiador, como poderíamos perceber a frase “na máquina a gente nunca pode estender o espírito com todas as suas faces”? Por tudo o que observamos, inferimos que o artista obviamente não poderia se conformar com a limitação expressiva imposta pela máquina de escrever. Para Cícero, o pensamento não teria formato. E isso é exemplificado por uma das cartas direcionadas a Mário de Andrade, que, apesar de ser datilografada, ganha todas as cores em suas mãos por meio de seus desenhos. No caso da missiva de Murilo Mendes, o texto até poderia ser o mesmo, mas, em sua percepção, a mensagem muda a partir do momento em que a mão, com o seu traço pessoal, entra em ação.
Roland Barthes, anos mais tarde, nos colocaria a seguinte questão: “A letra mata e o espírito vivifica?”.[34] Para Cícero, a letra só perde sua vitalidade se for mecânica, se não tiver a oportunidade de se manifestar de forma singular, aproximando-se, assim, da manifestação única e linear do desenho. É nesse lugar limítrofe, exposto por Cícero Dias, que percebemos, como destaca Veneroso, “que a escrita não é apenas um meio de transcrição da fala, mas uma realidade dupla, dotada de uma parte visual”.[35] Retomando a questão de Barthes, poderíamos complementar essa reflexão com sua proposta de inversão do percurso, que nos levaria da letra à palavra.[36] Para ele, esse seria o “caminho não da linguagem, mas da escrita, não da comunicação, mas da significância: aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação”.
Vendo tais manifestações concretizadas em objetos artísticos, logo concluímos que essas cartas constroem um espaço de suspensão do próprio significado do objeto enviado, transpondo o diálogo para outro nível expressivo, ainda que este venha apoiado, por vezes, pela escrita. Tal qual nos provoca Barthes, “A escrita é feita de letras. É uma evidência. Mas as letras, de que são feitas?”[37] O mesmo traço que forma o desenho forma a palavra. O sentido de ambos se vê ampliado quando levados ao limite, que faz com que os dois se esbarrem.
Quando Cícero diz não poder estender amplamente o espírito na escrita pelo uso da máquina, possivelmente estaria vislumbrando o potencial da escrita de dizer tudo em seu alcance não verbal, por consequência, imagético. Ao analisar seu desenho, Mário de Andrade ressaltaria essa capacidade do artista em aproximar o traço desenhado do traço escrito, observando que
[…] por mais transcendentes da forma plástica, ou por mais anedóticas e intelectualmente analisáveis que sejam as confissões de Cícero Dias, elas são do mais essencial valor “caligráfico”. Não são essencialmente um grafismo apenas, como é da natureza do desenho, mas uma caligrafia. Conjugam estranhamente, e de maneira muito rara, o poder anti-dinâmico da plástica legítima, com a realidade confessional do desenho.[38]
Ao produzir imagens instigantes em cartas pessoais, Cícero Dias nos convida a refletir sobre a prática do desenho-escrito e a necessidade de expressar pensamentos não apenas por palavras, mas também pela vivência artística presente em pequenos e grandes detalhes.[39] Essa singularidade é capturada por Mário de Andrade ao afirmar que “Cícero Dias faz imagens que escapam, sem nenhuma revolta às leis normais do nosso mundo”.[40]
Considerações finais
Nosso texto visou refletir sobre a forma como a presença de desenhos em cartas permeou a rede de sociabilidades estabelecida entre Cícero Dias, Mário de Andrade e Murilo Mendes. Ao mesmo tempo, almejamos apresentar, ainda que brevemente, algumas das características distintivas das criações de Cícero Dias em missivas, algo que o diferencia dos demais artistas constantes na Coleção Mário de Andrade.
A proximidade visual de muitas das cartas elaboradas dentro do recorte temporal de execução do painel “Eu vi o mundo… ele começava no Recife”, indica um transbordamento da inquietação artística de Dias para documentos de seu cotidiano. Para além disso, a existência de cartas com desenhos escritas em outros momentos, somente reforçam esse atravessamento entre arte e vida para o pernambucano.
Por outro lado, o percurso analítico para documentos aqui proposto, revelam a conexão entre escritores e artistas, em relações muitas vezes permeadas pela arte. Nesse sentido, as cartas com desenhos dão materialidade para nossas suposições. Apesar de ser muito difícil explicar com exatidão os motivos que levaram Murilo Mendes a repassar esses itens para Mário de Andrade, é chamativo como neles três o desenho ou a análise que o artista faz dos desenhos que cria, é um elemento fundamental. Nesse sentido, Baudrillard ressaltaria que é na coleção que triunfa “este empreendimento apaixonado de posse, [sendo] nela que a prosa cotidiana dos objetos se torna poesia, discurso inconsciente e triunfal”.[41]
Mais do que ver como esses importantes colecionadores tinham ou conservavam os objetos, precisamos colocá-los para conversar. E aí, quando aproximamos elementos como esses aqui apresentados, vemos como o diálogo entre os vestígios desvelam, nos detalhes, que a linha muitas vezes pautada pelas questões das paulistas pontuadas na base da sedimentação do pensamento Modernista no Brasil, na verdade não é reta, mas sim, uma grande ramificação com elementos, por vezes pouco explorados.
Os objetos aqui articulados, nos falam sobre a importância da rede de sociabilidades, das relações, contatos e articulações intelectuais. Não somente de Mário de Andrade e Murilo Mendes, no sentido da formulação de suas próprias coleções, mas também para circulação de obras vinculadas ao ideário artístico modernista.
Da mesma forma, as relações entre escrita e desenho vistas nas cartas de Cícero Dias, nos possibilitam fazer um percurso diferente sobre o modernismo brasileiro, a partir do subterrâneo das relações. Com isso nos afastamos um pouco do marco histórico sempre posicionado na Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922 e nos aproximamos de uma rede de sociabilidades que lança outras perspectivas para a produção de arte no Brasil, no começo do século XX.
Notas
[1] Tese de doutorado realizada entre 2013 e 2017, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com Bolsa PDSE CAPES na Sorbonne Nouvelle entre agosto e dezembro de 2015. Cf.: Renata Oliveira Caetano, “Diálogos traçados: as cartas-desenho na Coleção Mário de Andrade” (Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes, 2017).
[2] Algumas delas estão relacionados a acervo especializados neste tipo de documento como é o caso do texto de Petra Chu sobre a coleção de cartas ilustradas da Fondation Custodia, o livro organizado por Marie Odile Germain e Antoine Coron sobre os tesouros da Biblioteca Nacional Francesa e o livro de Lisa Kirwin que categoriza as cartas ilustradas do Archives of American Art do Smithsonian.
[3] Marta Rossetti Batista, “8 Cartas-Desenhos”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, no. 23 (1981): 103-122, acesso em 04 dez. 2024, https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/69651
[4] Renata Oliveira Caetano, “A Carta-Desenho e experiência de apropriação artística”, em Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA), n° 12 (2018), acceso 4 de diciembre de 2024, https://caiana.caiana.com.ar/dossier/2018-1-12-d15/
[5] Michel Foucault, “A escrita de si”, em O que é um autor? (Lisboa: Passagem, 1992), 129-160.
[6] Expressão utilizada pelo Prof. Dr. Alain Pagés (Sorbonne Nouvelle – Paris 3) quando falava sobre a importância de observação da materialidade das cartas, na palestra “Que nous disent les autographes”, proferida no dia 08/11/2016 como parte das atividades do 4º Colóquio Internacional Artífices da Correspondência: procedimentos teóricos-metodológicos e críticos na edição de cartas, realizado pelo IEB/USP, na Sala de Eventos do Instituto de Estudos Avançados/USP.
[7] “A tradição medieval dos clérigos propõe cinco etapas na redação da carta salutatio (saudação), benevolentiae captatio (busca da benevolência), narratio (narração), petitio (pedido ou objeto da mensagem) e conclusio (conclusão). […] No classicismo, houve uma tendência a simplificar as cinco partes em três etapas. Estas se distinguem por sua função: tomar contato com o destinatário, apresentar e desenvolver o objeto da mensagem, despedir-se”, Geneviève Haroche-Bouzinac, Escritas epistolares. Trad. Lígia Fonseca Ferreira (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016), 33.
[8] Philippe Lejeune, “A quem pertence uma carta?”, em O Pacto auto biográfico: de Rousseau à internet, (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014), 291-294.
[9] Angela Grando, “Cicero Dias: 1907-2003”, cat. exp. (Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2017), 10. Acesso 20 de dexembro de 2024, https://issuu.com/galeriamultiarte/docs/miolo_cicero_dias_saida_reduzido
[10] Mattar ressalta que “[o] ciclo de memórias e sonhos da década de 1920 culmina com a apresentação do épico painel ‘Eu vi o mundo… ele começava no Recife’, no Salão Revolucionário da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1931, organizado por Lúcio Costa”, em Denise Mattar, “Cícero Dias: um percurso poético (1907-2003)”, cat. exp. (São Paulo: Base7 Projetos culturais, 2017), 51.
[11] Mattar, “Cícero Dias…”, 51.
[12] Segundo Maria Izabel Branco Ribeiro, essa teria sido a primeira menção de Cícero Dias em cartas para Mário de Andrade, por meio da missiva de Manuel Bandeira de 21 jun. 1928. Maria Izabel Branco Ribeiro, “Cícero Dias: décadas de 20 e 30”, cat. exp. (São Paulo: FAAP, 2004), 23.
[13] Cícero Dias, Eu vi o mundo: Cícero Dias, (São Paulo: Cosac Naify, 2011), 43.
[14] Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade. Série: Correspondência; Correspondência Passiva; Passiva Lacrada. Código de Ref.: MA-C-CPL no. 2474. Cartão de Cícero Dias a Mário de Andrade [ant. 28 nov. 1928?]. A grafia original foi corrigida seguindo os parâmetros atuais da Língua Portuguesa.
[15] Mário de Andrade, Turista Aprendiz, Org. Telê Porto Ancona Lopez (São Paulo: Duas cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976), 203-204.
[16] Dias, Eu vi o mundo: Cícero Dias, 60.
[17] A exposição aconteceu no hall da Policlínica do Rio de Janeiro em concomitância com o I Congresso de Psicanálise da América do Sul, em junho de 1928.
[18] Josué de Castro, “Cícero Dias e Kretschmer”, O Jornal, Rio de Janeiro (1928). Reproducido em Luis Olavo Fontes, Cícero Dias: Anos 20/ Les années 20 (Rio de Janeiro: Ed. Índex. 1993), 32.
[19] Em Ana Luisa Martins, Aí vai meu coração: cartas de Tarsila do Amaral e Anna Maria Martins para Luís Martins (São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003), 134.
[20] Em Waldir Simões de Assis Filho, Cícero Dias (Curitiba: Simões de Assis, Galeria de Arte, 2001), 329.
[21] A professora titular de Literatura Brasileira na FFLCH-USP foi uma das primeiras pessoas a começar a pesquisa e a organização das marginálias de Mário de Andrade, inicialmente sob a orientação do professor Antonio Candido e posteriormente como professora e pesquisadora, tendo sido responsável pela curadoria do Arquivo Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Cf. Walnice Nogueira Galvão, “O Mundo de Mário de Andrade (Entrevista com Telê Ancona)”, Revista Teoria e Debate, Edição 108 (2013), acceso em 4 de enero de 2025, http://www.teoriaedebate.org.br/materias/cultura/o-mundo-de-mario-de-andrade
[22] Cícero Dias, Cena-violão, mulher e soldado, 1928, guache sobre papel, 23,8 cm x 27,4 cm. Acervo IEB-USP, Coleção de Artes Visuais – Mário de Andrade.
[23] Acervo de Artes Visuais IEB-USP, Fundo Mário de Andrade. Série: Artes Plásticas. Código de Ref.: CAV-MA-0167. Carta remetida por Cícero Dias para Mário de Andrade. Rio de Janeiro, 19 dezembro 1930.
[24] Murilo Mendes ganhou o “Prêmio de Poesia Graça Aranha” na categoria “Poesia” pelo livro “Poemas”, assim como Rachel de Queiroz ganhou na categoria “Prosa” pelo livro “O Quinze”, ambos publicados em 1930. Cícero ganhou na categoria “Pintura” pelo conjunto de trabalhos produzidos até então.
[25] Dias, Eu vi o mundo: Cícero Dias, 48-49.
[26] Publicação que contou principalmente com as ilustrações de J. Carlos, dentre outros, circulou entre as décadas de 1920 e 1930 trazendo, predominantemente, conteúdo cultural.
[27] No desenho publicado, a cabeça passa a sensação de peso, tamanho o volume de elementos que dali saem, forçando o corpo a se curvar e se apoiar em uma cadeira. A figura esguia ocupa verticalmente o lado esquerdo do desenho, que aparenta ser uma varanda com noite estrelada. Em um dado momento os elementos se misturam em um grande volume de informações. Atentando à figura de Murilo, temos o apoio para tal interpretação visual, no texto de Cícero Dias publicado junto da imagem, que versa: “Um rapaz comprido, de cabeça inquieta, de corpo móle. Como a cabeça não pára, o corpo vae com ella, mas sem vontade, arrastado. É o casamento da raposa. Sol e chuva. É o poeta Murilo Mendes. Quantos senhores arrumam versos, publicam nos jornaes, nas revistas, soltam nos livros. Murilo Mendes, antes de publicar qualquer coisa, já era conhecidissimo e admiradissimo. Toda a gente que vale a pena lhe quér bem. Porque elle é um. Sósinho. Proprio. Elle mesmo. Não pediu nada. Fez tudo. Tem sentidos de Murilo Mendes. Idéas de Murilo Mendes. O que escreveu é seu. Não é parecido, Nem dá ares. Novo em folha. Foi descansar em Minas Gerais. Amarrou um punhado de poemas. Sem outro titulo. ‘Poemas’. Prompto. Um livro. Livro que não tem passado, Livro de repente. Melancolia de brasileiro bem nascido. Irreverencia de moleque de rua. Ternura e vaia. Nacional. Universal. Lembranças do homem solto no mundo. Viu paysagens. Viu multidões. Palacios e fabricas. A alegria triste dos ricos. A alegria contente dos pobres. Andou. Virou. Mexeu. Depois foi dormir e sonhou com os anjos de Nosso Senhor… – A…”.
[28] Roland Barthes, O óbvio e o obtuso: Ensaios Críticos, (Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1990), 94.
[29] Maria do Carmo de Freitas Veneroso, Caligrafias e escrituras: diálogos e intertexto no processo escritural nas artes no século XX (Belo Horizonte: C/Arte, 2012), 81-82.
[30] Acervo de Artes Visuais IEB-USP, Fundo Mário de Andrade. Série: Artes Plásticas. Código de Ref.: CAV-MA-0166. Carta remetida por Cícero Dias para Mário de Andrade. Rio de Janeiro, s.m. 1930.
[31] Tratava-se de publicação que trazia dados e curiosidade sobre cidades e regiões portuguesas. Tal universo era caro a Murilo Mendes, que era casado com a também poetisa Maria da Saudade Cortesão, filha do dramaturgo, poeta e historiador português Jaime Cortesão.
[32] “Mangue” era o termo utilizado para nomear a área de prostituição na cidade do Rio de Janeiro.
[33] Ao transcrever o trecho, optamos por atualizar a grafia de certas palavras.
[34] Barthes, O óbvio e o obtuso…, 93.
[35] Veneroso, Caligrafias e escrituras…, 33.
[36] Veneroso, Caligrafias e escrituras…, 94.
[37] Veneroso, Caligrafias e escrituras…, 96.
[38] O ensaio “Cícero Dias e as danças do Nordeste”, de Mário de Andrade, foi escrito a convite de Manuel de Souza Barros, na época diretor da revista Arquivos, de Recife, por intermédio do poeta pernambucano Ascenso Ferreira, em outubro de 1944. Foi publicado postumamente em 1947, no. 5/6 da revista.
[39] Tomamos aqui como referência a reflexão promovida por Antonin Artaud (1896-1948) em seus questionamentos pessoais sobre a materialização de sua escrita-pensamento. Em seu processo, chegou àquilo que nomeou como desenhos-escritos, criações poético-plásticas que relacionam linha e traço a partir de uma espécie de fratura na linguagem, na qual ele percebe não ser mais possível escrever sem desenhar. Kiefer destaca que “[…] ligadas pelo traço de união escrita e desenho serão pensadas como uma nova prática da linguagem partida”. Cf.: Ana Kiefer, Antonin Artaud: uma poética do pensamento (Coruña: Editora Biblioteca-Arquivo Teatral «Francisco Pillado Mayor», 2003), 22.
[40] Mario de Andrade, Cícero Dias e as danças do Nordeste, s.p.
[41] Jean Baudrillard, O sistema dos objetos (São Paulo: Perspectiva, 2006), 95.