A Carta-Desenho e experiência de apropriação artística
Compartir
> autores
Renata Oliveira Caetano
Renata Oliveira Caetano é historiadora da arte e professora de Artes Visuais no Colégio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. É Especialista em Arte, Cultura Visual e Comunicação; Mestre em História pela UFJF; Doutora em Arte pela UERJ. Segue estudando algumas relações entre desenho e escrita em coleções brasileiras e internacionais.
Fecha de Recepción: 20 de enero de 2018
Fecha de Aceptación: 5 de junio de 2018
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional.
> como citar este artículo
Renata Oliveira Caetano; «A Carta-Desenho e experiência de apropriação artística». En Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 12 | Año 2018 en línea desde el 4 julio 2012.
> resumen
O presente artigo visa apresentar um pouco das percepções sobre o desenho no Brasil do começo do século XX. Para tal análise, contamos com as percepções e ações estabelecidas entre o escritor Mário de Andrade e a artista Anita Malfatti, por meio do estudo de caso de uma Carta-Desenho que marcou o diálogo e a amizade de ambos. A ideia é refletir, se poderia a carta, elaborada por Malfatti e remetida para Andrade, ser tomada como local de registro de um gesto que ultrapassa o envio de mensagens. Posto de tal forma, pretendemos investigar se expansão da função da missiva por meio da experimentação poética desenhada poderia transformar um objeto do cotidiano em objeto artístico.
Palabras clave: carta, desenho, experimentação poética, gesto de apropriação, documento manuscrito
> abstract
This article aims to present some of the perceptions about the drawing in Brazil in Twentieth century. For this analysis, we rely on the perceptions and actions established between the writer Mário de Andrade and the artist Anita Malfatti through the case study of a Drawing-Letter that marked the dialogue and the friendship of both. The idea is to reflect, if the object, elaborated by Malfatti and sent to Andrade, could be taken as a place of registration of a gesture that goes beyond the sending of messages. In this way, we intend to investigate whether the expansion of the function of the missive through of poetic experimentation drawing to record the ephemeral aspects could transform an everyday object into an artistic object.
Key Words: letter, drawing, poetic experimentation, appropriation gesture, manuscript document
A Carta-Desenho e experiência de apropriação artística
Três folhas de papel azul esverdeado manuscritas na frente e no verso com tinta preta. O estado é frágil. Há marcas de dobras. A letra tem um ritmo próprio, sendo um pouco inclinada para a direita do leitor. Não há uma margem definida, o texto se desenvolve em parágrafos que formam blocos. A página é completamente coberta pelos pensamentos que tomam forma por meio da escrita. Vez ou outra aparece um traço que delimita uma interrupção ou uma palavra sublinhada que pode ser importante dentre aquilo que precisa ser transmitido. Em alguns momentos, a pausa do instrumento de escrita gera manchas pretas de excessos de tinta sobre algumas palavras. Há poucas rasuras, muitas notícias e reflexões que ali, na escrita solitária, se pretendem eco quando lidas.
Depois de desejar um longo abraço ao seu interlocutor e assinar de forma peculiar, em um espaço pequeno do papel, vemos quatro desenhos. Da esquerda para direita, temos um homem de costas segurando algo redondo; uma mulher nua em pé com os braços para o alto, como que posando; uma criança com algo grande sobre a cabeça e um outro volume próximo ao corpo; e, por fim, um porco gordo. Abaixo disso, uma espécie de observação escrita com letra pequena e rápida decreta: “Isto não é enigma. São desenhos” (Fig.1).
A carta brevemente descrita foi elaborada pelo escritor Mário de Andrade (1893-1945) e enviada para a artista Anita Malfatti (1889-1964) em 18 de março de 1924.[1] Os dois brasileiros foram peça fundamental na construção do discurso de ruptura modernista, ocorrido em São Paulo, no final dos anos 1910 e início dos anos 1920. Tal documento faz parte de um extenso grupo de correspondências trocadas e guardadas pelos dois. O percurso nos apresenta a amizade firmada entre o escritor e a artista, mas também revela uma característica bastante interessante do diálogo: ser portador de traços que criam imagens.
No caso de Andrade, a produção de desenhos tem um marco muito especial: o ano de 1924. Talvez a viagem do grupo de modernistas paulistas ao Estado brasileiro de Minas Gerais[2] tenha aumentado no escritor a necessidade de desenhar, pois em sua Coleção de Artes Plásticas vemos um bom número de exemplares. Contudo, o envio de gracejos em forma de imagens por parte do escritor aconteceu somente três vezes,[3] todas elas enviadas à sua amiga, Anita Malfatti.
A artista, por sua vez, utiliza o traço desenhado em meio a escritos para delicadamente enviar esboços de obras, pequenos detalhes no corpo do texto ou no encerramento da epístola. Entretanto um exemplar se destaca: aquele, escrito-desenhado em parceria com outro artista, o suíço John Graz. Dessa forma, o presente artigo visa apresentar um pouco das percepções sobre o desenho, travadas entre o escritor e a artista, com foco nesse exemplar específico. A ideia é refletir, se poderia a carta, ser tomada como local de registro de um gesto que ultrapassa o envio de mensagens. A expansão da função da missiva por meio da experimentação poética desenhada, que registra efemeridades, poderia transformar um objeto do cotidiano – um documento manuscrito – em objeto artístico?
O escritor e colecionador entre desenhos
Os traços e as linhas que criam desenhos, letras, preenchimentos e rabiscos aparecem na Coleção de Mário de Andrade não somente por meio de trabalhos de Anita Malfatti. Eles foram feitos pelas mãos de outros artistas e pelos mais diferentes motivos. São vestígios de um comportamento epistolar bem específico que acontece em diversas coleções mundo afora. Tratam-se de exemplos que indicam a carta com desenhos enquanto algo que, em sua potência, pode ser pensado nos dias de hoje como o aquilo que há “entre” o pensamento e a ação, a arte e vida, a escrita e desenho. E se em uma extremidade estão os artistas produzindo seus objetos, na outra temos a figura do colecionador. O escritor brasileiro Mário de Andrade, por exemplo, concentrou em torno de sua figura cerca de vinte e oito cartas com desenho enviadas especialmente por cinco artistas.[4]
O gosto por colecionar despontaria bem cedo em Andrade. A cabeça do tigre desenhada em um papel no ano de 1905 ficaria enquadrada em moldura e exposta na parede de sua casa em São Paulo, na rua Lopes Chaves, juntamente com tantos outros objetos. Pouco depois, começaria a juntar notas publicadas em jornais sobre assuntos diversos.[5] A vontade poderia até já existir, entretanto, a coleção começou, efetivamente, a partir de algumas percepções. Podemos tomar como base os próprios depoimentos de Andrade, para notar que o ano de 1917 é o marco do começo de toda uma noção modernista que estabeleceria, entre outras coisas, o conjunto agrupado ao longo de quase três décadas. Na São Paulo do começo do século, a “Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti”, realizada na rua Libero Badaró, seria, de fato, um dos momentos definidores de muitas percepções artísticas do escritor. A obra Homem Amarelo, mais tarde, viria a compor sua coleção, juntamente com outras obras de Malfatti, que se tornaria também uma grande amiga com o passar dos anos.
A lista de artistas brasileiros que compõem sua coleção de 667 peças de artes visuais é extensa. No entanto, percebemos a recorrência de alguns nomes com um maior número de obras e que seriam importantes para respaldar as noções de modernismo que o importante escritor pretendia fazer vingar –e encabeçar– na produção de arte brasileira. Por outro lado, há aqueles que sabemos não terem incorporado os princípios defendidos por Andrade e, talvez por isso, quando aparecem, contam com poucas obras no conjunto.
A morte do escritor aos 52 anos de idade, silenciou o colecionador e não permitiu que soubéssemos quais seriam os encaminhamentos que ele daria para sua coleção. Seus objetos foram deixados para familiares que conservaram tudo em sua casa. De acordo com o Guia do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo,[6] uma boa parte dos objetos deixados foi repassada em 1967 para a USP. As peças da coleção e da biblioteca foram compradas por um valor simbólico. Os documentos de arquivo foram doados. Em 1968, tudo foi incorporado ao Instituto de Estudos Brasileiros, formando um conjunto com documentos e livros de outras pessoas. O IEB/USP, criado por Sérgio Buarque de Holanda em 1962, contava até então com a Biblioteca e, em 1968, viu a necessidade de formar um Arquivo para organizar o segmento documental de arquivos pessoais doados, tendo se tornado um órgão separado em 1974. Já a Coleção de Artes Plásticas surgiu justamente da integração do conjunto de Mário de Andrade, tendo sido esse o único acervo até 1981, quando começaram a se integrar novas coleções.
Repassado o conjunto, iniciou-se um grande trabalho de processamento e organização para possibilitar o acesso e a pesquisa ao longo dos anos. Assim, atualmente, na divisão estabelecida com base no texto do Guia do IEB/USP,[7] temos o Arquivo, com documentos manuscritos que dão conta tanto do trabalho de Mário de Andrade como escritor (prosa e poesia), quanto de outros escritores, e, também apresenta suas correspondências; a Biblioteca que conta com obras da vanguarda europeia e aquilo que se produziu no Brasil entre 1917 e 1945; a Coleção de Artes Plásticas que tem como componente pinturas, desenhos, gravuras e esculturas, a maioria de arte brasileira do começo do século XX, algumas obras de arte europeia e outros objetos.
A densidade da coleção passa, portanto, por algumas questões: pelo fato de ela ter muitos objetos ganhados espontaneamente, sinalizando o apreço e a amizade de artistas pelo escritor; pelas peças adquiridas, o que indica muito dos princípios imagéticos que o moveu; e percebe-se também a ocorrência dos pedidos dele, normalmente por desenhos. Mapeamos isso pelas conversas nas correspondências e pela recorrência de certos objetos. Em comum nessa atitude, o foco naqueles artistas mais próximos e a vontade de acompanhar as suas produções. Para além disso, ainda há a conservação de desenhos feitos pelo próprio Andrade e outros escritores da época.
Contudo, o interesse por desenhos não pararia por aí. Sendo ele um homem das letras, ocorreu-lhe também a necessidade de escrever sobre a técnica que tanto o interessava. Assim nos forneceu algumas pistas para pensarmos a forma com que o colecionador via o seu conjunto de desenhos. É importante lembrar que em seus dois textos dedicados ao assunto[8] o desenho é tratado como uma técnica intermediária entre a escrita e a pintura. Segundo ele, pelas suas finalidades, a fatura poderia ser mais próxima da prosa e, principalmente, da poesia. Mas, por causa dos meios de realização, acabava sendo vinculada à pintura e à escultura.
Pelo que parece, prevaleceu em sua leitura o desenho como uma espécie de caligrafia, um grafismo a ser compreendido com a inteligência que decodifica o traço escrito. Esse elemento, em sua interpretação, é uma convenção fundamentalmente “desenhística”. E seria, também, o elo que faz com que o desenho seja um fenômeno material apenas como escrita. Por outro lado, aquilo que o distancia da pintura é o fato de ser “aberto”. Essa palavra é empregada no sentido de que faltaria ao desenho limites espaciais e composicionais, presentes na pintura (pois, em sua defesa, para que a pintura exista, tem que haver composição que presume os limites da tela). Ao contrário disso, afirma o escritor, ser um “contrassenso” aplicar a palavra “composição” a um desenho, que não se limita nem pelos limites do papel.
Assim, nos dois textos, posicionou conceitualmente as diferenças e oposições que, para ele, seriam fundamentais entre a pintura (elemento de eternidade que tende ao divino) e o desenho (agnóstico; algo que se define transitoriamente). Este último não seria, portanto, uma prática que buscaria a “essência misteriosa e eterna das coisas”, mas sim seria como que uma definição, “da mesma forma que a palavra ‘monte’ substitui a coisa ‘monte’ para nossa compreensão intelectual”.[9]
O escritor paulista traça, em algumas folhas, compreensões que, de fato, nos auxiliam a pensar suas posturas, mas que, em alguns momentos, confinam o desenho fora do campo expressivo de criação, contramão do processo de reflexão que propomos no presente texto. Contudo, o problema de sua abordagem não é fazer uma relação entre desenho e escrita, algo feito por muitos autores, e que, de modo diferente dele, também fazemos.
Na virada entre os séculos XIX e XX, pintura e desenho iriam se confirmar como acontecimentos autônomos, mas em nenhum momento deixariam de ser tratados como práticas artísticas ou seriam elencados em uma escala de importância. O ponto mais fraco da argumentação de Andrade, portanto, é o estabelecimento de uma visão dicotômica posicionando desenho em um lugar diferente, e talvez inferior, da pintura e da escultura no que diz respeito aos processos artísticos de criação. É isso que faz, em sua visão, com que a fatura gráfica encontre diálogo com a escrita enquanto ato.
Devemos observar, no entanto, que ele consegue chegar somente até esse ponto: desenho como escrita. Não é possível perceber um pensamento no caminho contrário, ou seja, escrita como desenho, em uma aproximação de forma com que a primeira seja um elemento de criação visual tanto quanto o segundo. Se o desenho não era visto pelo escritor como uma linguagem artística, de fato, muito dificilmente chegaria a essa conclusão. Aqui esbarramos no limite do pensamento de Mário de Andrade acerca da discussão poética e estética sobre cartas com desenhos. Já entendemos que, segundo ele, onde há escrita e desenho juntos, não há propriamente dito uma criação artística, tida como “superior” no sentido da construção de obras de arte tal qual há em pinturas e esculturas dentro de um conceito coordenado com os princípios das Belas Artes. Há sim uma relação de funcionalidades entre uma e outro. Isso faz definhar a percepção da potência experimental dessas cartas, enquanto visualidade, embate entre escrita e desenho e enquanto debate de uma forma geral.
É carta. É desenho
A presença de imagens no espaço epistolar é bastante frequente e se trata de mais um dentre vários crivos que distinguem os documentos manuscritos. Feitas em diferentes épocas, com técnicas distintas e dos mais diversos modos, por algum motivo as pessoas tiveram a necessidade de colocar em suas cartas uma ou muitas imagens. Normalmente, elas são agrupadas em algumas instituições pela categoria “Carta Ilustrada”.
Encontrar esse tipo de missiva no acervo de Mário de Andrade fez com que pensássemos tal objeto a partir de outra perspectiva. Não somente pelo fato de ocorrer por meio de um percurso de aquisição incomum entre colecionadores, mas também por haver uma grande diferença no foco que move esse interesse. Efetivamente, não parece chamar a sua atenção a compra de cartas com imagens endereçadas a outras pessoas, em locais e épocas diferentes.[10] A grande questão ou critério de significação instaurado pelo escritor parece ser a possessão desses objetos específicos gravitando em torno de sua figura, ou feitos por ele mesmo, formando um conjunto relativamente pequeno, mas de fato único e sem mover vultosas quantias em dinheiro para alcançar o seu objetivo.
Assim, cartas com desenhos podem ser inicialmente interpretadas como documentos materiais das relações que Andrade travou com alguns artistas. Entretanto, essa reflexão/ diálogo/ expressão, que ganha um corpo visual, é também um rastro atravessado por lacunas e sua irregularidade enquanto acontecimento é um dos principais fatores disso. Por serem desenhos-escritos[11] que acompanham ou acontecem em objetos do cotidiano, não podemos ignorar que sofrem de uma espécie de lateralidade em seu tratamento, algo que muitas vezes dificulta sua compreensão enquanto construção de um pensamento artístico permeado por desenhos e palavras.
Ainda devemos pensar que esse acontecimento concomitante no mesmo objeto gera uma situação dúbia em sua classificação. Alguns espaços institucionais optam por promover um agrupamento com outras peças “semelhantes”, estabilizando-as em um conjunto. Em outros casos, vemos sua fragmentação na tentativa de delimitar a separação dos objetos a partir de distintos critérios. Contudo, ao olharmos sua materialidade e começarmos a perceber suas proposições visuais para além das mensagens, seria quase impossível não surgirem algumas questões. Poderíamos afirmar que a categoria institucional vigente dá conta da potencialidade artística desses objetos? Por outro lado, é importante refletir: fragmentá-los a partir de seus temas, suas funcionalidades, sua maior ou menor proximidade com a carta enquanto gênero, possibilitaria observá-los criticamente?
A presença do desenho é, então, uma questão central quando ocorrida em cartas. A partir da constatação dessa existência, é preciso estabelecer um debate que capte, em suas entrelinhas, a construção de narrativas visuais, pessoais e poéticas. Narrativas que fazem uso daquilo que há entre o desenho e a escrita. Estamos falando, portanto, sobre uma sutil marcha do gesto de apropriação que transfigura o espaço epistolar em espaço de experimentação de um pensamento que é visual. Ação tal que abala aquilo que entendemos como desenho, mas principalmente abala aquilo que entendemos como carta.
Sabemos ser possível escrever notícias de forma objetiva, mas pode-se escolher fazer relatos pessoais, algo que abre espaço para a expressão mais subjetiva e poética a ser enviada ou não.[12] Assim, a despeito das mãos pelas quais passaram, elas nos proporcionam, nos dias de hoje, a possibilidade de novas leituras, como propõe Lejeune,[13] a partir de três aspectos bastante objetivos: a carta como objeto (que se troca); a carta como ato (que coloca as personalidades em cena); e, por fim, a carta como texto (que pode vir a ser publicado).
Para estudos que visam as informações textuais dos documentos, é sempre importante contar com os dois lados da conversa, o que possibilitaria o princípio de confrontações epistolares e conclusões mais específicas. Contudo, na falta da sequencia e dos dois lados do diálogo, é possível trabalhar outras questões, como, por exemplo, um estado de espírito, ou servir como expressão de um objetivo preciso, o que parece ser o nosso caso.
Então, está claro que a análise desse tipo irregular de carta impõe outra lógica de compreensão, pois nos papeis de tamanhos variados, o espaço vazio se ofereceu para ser ocupado. Ali, deu-se um acontecimento que contrasta com a imensidão de branco, bege, azul esverdeado ou cinza do suporte. O momento não mais se repetirá. Trata-se de uma ação, um impulso, um gesto sobre aquele local agora configurado como portador de algo. Ele é, portanto, o elemento concreto da interseção entre o objeto-carta e o ato.
Nesse contexto, nos acostumamos a partir da escrita como a base de transformação do pensamento em algo palpável pela construção de palavras e frases. Se o debate entre desenho e pintura se desdobra ao longo de séculos, quando aproximado à escrita, há ainda mais nuances. Não podemos descartar a íntima relação entre ambos, pois basta retomar a configuração dos primeiros alfabetos para perceber que, grosso modo, a construção da representação da linguagem se deu, inicialmente, pautada por imagens, em sua maioria desenhadas.[14] A ideia, em muitos casos, segundo Christin,[15] não era representar o discurso, mas tornar o discurso visível.
Derrida forjaria o termo brisure, que pode nos auxiliar na compreensão desse tipo de acontecimento. Tal termo seria a tentativa de concretizar a ideia, consolidada especificamente pela escrita, de articulação entre o espaço e o tempo, ou uma experiência na qual um encadeamento gráfico adapta um encadeamento falado, por ventura de forma linear.[16] O autor reflete sobre isso a partir da perspectiva de transformação da linguagem falada – e do pensamento – em signo. Ora, o elemento concreto dessa ação descrita por Derrida é o traço, tão caro à escrita quanto ao desenho.
Certo, ao longo do tempo, o traço foi se configurando como a melhor maneira para tornar palpável o discurso, até, de fato, chegar, de diferentes formas, aos signos gráficos e, por vezes, abstratos que representam a linguagem falada. Contudo, o distanciamento que a escrita tomou da imagem em busca de sua autonomia não parece ter se dado da mesma forma no que diz respeito à compreensão do papel que a imagem tem em relação à escrita. Quando realizadas em um mesmo suporte, na maioria das vezes, o jogo gráfico é aquele da imagem ser tomada como facilitadora da construção de sentidos para um texto, com utilidade específica na página e função sempre girando em torno dele.[17] As técnicas podem diferir, assim como são variados os suportes. No entanto, a força que há na ideia de uma imagem embelezando a página ou tornando palpável um pensamento escrito, de alguma forma, sempre é atrelada a essa presença. Talvez seja nesse sentido, e pela formulação da ilustração embelezando manuscritos, que se adotou a nomenclatura “Carta Ilustrada” para agrupar conjuntos que contêm a imagem entre a escrita no mesmo suporte epistolar.
Mas onde ficaria o gesto, do qual Barthes nos fala ao delimitar o “grafismo” como resultado da ação, da energia do corpo, projetada pela mão com a ajuda de algum instrumento, sem intuito de transcrever palavras? Quando se trata de um artista, essa técnica pode ser uma das formas empregadas para fazer palpável o que se passa em sua cabeça, no entanto, isso nem sempre significa que ali se deu a aproximação meramente ilustrativa do texto pela imagem. Ela então pode ser o discurso, assim como a escrita pode assumir um caráter visual. Essa espécie de “gesto performático”,[18] torna visível as nuances de diálogos estabelecido além dos caracteres.
O uso de desenhos, nesse sentido, demarca o espaço de um tipo de ação que expande os limites funcionais de utilização da carta como objeto de escrita, revisando seu padrão de visualidade. Sua plausível incorporação como lugar também de ações poéticas desses artistas oferece uma narrativa transformadora de olhares/leituras do destinatário: dessa forma, em alguns casos, a ação artística potencialmente cria tensão no espaço visual da missiva. Compreendida assim, percebemos que a mensagem ganha características formais que solicitam percursos diferenciados para seu entendimento/leitura. Consequentemente o uso do desenho oferece ao interlocutor, no caso, Mário de Andrade, muito mais do que a amostra de uma produção artística daquele momento. Requer a potência de olhar para essas linhas e traços buscando ver as marcas pessoais que apresentam outros repertórios em um tipo distinto de narrativa.
Voltemos então à Coleção de Artes Plásticas de Mário de Andrade para inserirmos um objeto nesse debate. De início, observamos haver diferentes tratamentos para determinados itens do IEB/USP. Dispostas entre Arquivo e Coleção de Artes Plásticas, percebemos uma separação prévia das cartas com desenho, possivelmente determinada pelos sistemas de organização do escritor. Contudo entendemos que a classificação atual obedece a critérios definidos institucionalmente pelo IEB/USP. Dessa forma, vemos como, em sua maioria, esses objetos são tratados como “Carta Ilustrada”, conforme muitos outros acervos.
No entanto, de acordo com o padrão descritivo do Arquivo, determina-se “Espécie/ Formato/ Tipo”, e aqui a maioria dos objetos encontrados são classificados como “Carta” ou em poucos casos, “Bilhete”. Na “Descrição”, “Nota de pesquisa” ou “Observações”, demarca-se a presença de “texto e desenho (s)” nos documentos. De certa forma predomina o tratamento como carta (gênero), delimitando-se suas características: se é assinada ou não, forma de tratamento, autógrafo, tipo de papel, dimensões, eventuais danos, etc. O desenho é mais um acontecimento nesse corpus material. Eventualmente, os tratamentos diferentes, indicam o estabelecimento de algumas compreensões sobre esses objetos. Nesses casos, a presença do desenho prepondera enquanto elemento norteador dessas decisões. Assim, podemos apreender que são nomeadas “Cartas Ilustradas” aquelas nas quais o texto teria alguma relação com os desenhos, ainda que isso não seja explícito.
No entanto, no que tange a Anita Malfatti, algo chama a atenção. Na descrição de um dos seus itens no catálogo, lemos “Carta-Desenho. 1925c. (com John Graz)” (Fig. 2). Podemos desconfiar que a não submissão ao texto à imagem parece ter sido determinante para as compreensões que se desdobram em torno desse objeto específico. Algo que pode ser inferido pelo título que aqui não é “Carta Ilustrada”, assim como na sequência da descrição lemos “várias inscrições entre o desenho […]” ou “este desenho, que foi claramente remetido como carta para Mário de Andrade […]”.
Um rápido levantamento no catálogo nos mostra outros desenhos que também foram remetidos, entre os objetos do escritor. Podemos, portanto, presumir que o fato de o tratamento ser diferente somente para exemplar de Anita Malfatti em parceria com John Graz, não passa pela situação de ser um desenho enviado, pois nesse nicho de compreensão encontramos outros casos. Podemos inferir que a iniciativa de destacar a diferença dessa última missiva, chamando-a de “Carta-Desenho”, advém de sua condição visual híbrida,[19] ditada pela característica peculiar do objeto composto por dois elementos e, ao mesmo tempo, ser os dois.
Nas reflexões derridianas, a escrita estaria vinculada ao “traço instituído”, que poderia ser entendido como o elo entre sistemas diferentes de significação, mas, ao mesmo tempo, não guardaria nenhuma ligação com aquilo que representa. Se limitaria tão somente ao exercício de sua função. No entanto, diante dessa Carta-Desenho podemos pensar também a partir da ideia de gesto ou de como ele se infiltra no movimento de escrita, gerando marcas, calculadas ou não. Transitamos, portanto, entre a escrita e o desenho, no sentido que Barthes daria para “escritura”.[20] O conceito por ele trabalhado é associado à ideia de inscrição, como um ato muscular, ou a ação propriamente dita de escrever/desenhar, olhando para a escrita sem a intenção de ver somente a sua funcionalidade. Desse ponto de vista, em um sentido mais amplo, passamos a percebê-la como ato configurado no traço, “destituído” de significação. Da mesma forma, ganha destaque sua estreita relação com o desenho e os impactos desses diálogos na visualidade da página.
Tal caminho interpretativo, que segue na contramão dos pensamentos sobre a ligação entre desenho e escrita estabelecidos por Mário de Andrade, vem na esteira do trabalho de pessoas que ampliaram o espectro de atuação e diluíram as fronteiras entre os grafismos. O desenho como atitude e a escrita como visualidade não parecem ter sido percebidos pelo escritor brasileiro, ainda que já houvesse entre seus contemporâneos quem pensasse sobre isso. Algumas ações de escritores e artistas europeus já faziam pairar no ar indícios de uma mudança na sensibilidade em torno dessa aproximação. Os textos visuais concretizados em fatos, como por exemplo, a sua desconstrução tipográfica primeiramente por Mallarmé, depois por Apollinaire, ou os estudos sobre desenhos-escritos de Antonin Artaud, dentre tantos outros, assim como a insistente presença da palavra no território plástico, demonstram a sua crescente participação na visualidade do início do século de uma forma geral. “Les Mots en liberté” das experiências e apropriações futuristas demarcam um interesse tipográfico que vemos também nas colagens cubistas, assim como nas inversões dadaístas entre as palavras e seus significados ou nos jogos surrealistas; tudo isso, de alguma forma, deu a sua contribuição para a atuação artística, que queria experimentar a tensão surgida do encontro do desenho e da escrita no mesmo suporte.
Portanto, a partir de uma única ação, temos o traço característico da formação gráfica da letra ou o traço do desenho que se pretende rabisco; exercício; esboço; obra; ação. Em alguns casos, tratam-se de elementos estanques com papéis bem determinados, mas e quando um objeto do cotidiano, tal e qual Malfatti e Graz elaboraram, se transforma em suporte da dualidade do traço? Por meio da coexistência do desenho e da escrita marcados por tinta preta sobre o papel, seria possível perceber nessa Carta-Desenho a ideia de um traço ambivalente?
A ambivalência dá conta de um estado das coisas, pois trata da condição que possibilita uma existência simultânea e de igual intensidade em alguém, ou em algum lugar, ou em algum objeto. Essa existência desafiadora e dual do desenho em sua relação com a escrita, abala nossas certezas em relação àquilo que vemos. Ao mesmo tempo, deixa claro que no interior de uma categoria ditada pela funcionalidade do desenho em relação ao texto não é mais possível estabelecer nexos críticos entre os padrões visuais assumidos pelos artistas nas missivas. Tudo isso mediante a percepção –somada a um pouco de desconfiança– de que o desenho pode não estar na carta para embelezá-la; de que há sim, uma expansão –ou retomada– de suas relações poéticas com a escrita; e, por fim, de que esta também pode ser visualidade na carta.
Aqui, já está claro que não visamos refletir sobre o objeto como uma coisa ou outra, sobre o que é mais desenho ou o que é mais carta. Partimos da ideia de Carta-Desenho como sendo as duas coisas ao mesmo tempo, para verificarmos de que formas o suporte e o gesto, e entre eles, a escrita e o desenho, se constituem como um ato poético ou como proposição. Um acontecimento de criação artística no qual cada um, a seu modo, se dá a oportunidade de traçar visualidades pelo cheio ou pelo vazio; pelo desenho com muita ou pouca escrita; pela escrita enquanto ritmo e forma, pelo desenho-escrito ou por tudo isso ao mesmo tempo. Assim, a existência desse princípio visual atravessa tanto a ideia de carta, quanto a de desenho individualmente, expandindo compreensões sobre os seus processos de constituição como tal.
Entre a carta e o ato: desenho-escrito e o objeto híbrido
As cartas foram, durante algum tempo, o elemento de comunicação primordial para dar corpo à amizade existente entre Mário de Andrade e Anita Malfatti. No começo de 1922, já existia a troca epistolar entre os dois; contudo, sempre haveria a possibilidade de se encontrarem pessoalmente. Sabemos que a artista foi bolsista do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo em 1923, ficando em Paris até 1928. Entre muitas histórias a narrar, saudades a registrar e brigas a travar, ambos escreveram várias páginas ao longo desses anos, marcados pela distância física.
O paulista apresenta um comportamento bem claro no tocante à presença dos desenhos, sempre pequenos, sendo dois feitos ao final da carta e um enquanto ilustração. Todos relacionados ao texto, seja por meio de legendas ou em forma de história narrada. Já a artista, quando atua individualmente nas missivas, apresenta um determinado comportamento; no geral, o desenho aponta para uma função. Somente em uma das cartas, datada de 1925, vemos uma pequena interferência gráfica ao final da missiva, sem muitas explicações. Quando conta com parceria, no entanto, Anita passa a explorar outras possibilidades de criação artística, sendo a carta o suporte material para os pensamentos desenhados-escritos.
Ao mapearmos as correspondências de ambas as partes, observamos haver uma recorrência de acontecimentos desenhados em anos específicos, a saber, 1924 e 1925. Foram trinta e oito cartas no total durante esses dois anos e, dentre elas, seis cartas com desenhos individuais, três de cada parte. Andrade enviou todas em 1924, enquanto Malfatti mandaria uma naquele ano e duas individuais em 1925, sendo que ainda temos fora dessa contagem a Carta-Desenho feita provavelmente no mês de dezembro, em parceria com John Graz.
No dia dois de abril de 1925,[21] de São Paulo, Graz escreveria para Mário de Andrade agradecendo pelo envio de seu novo livro. O suíço manifestaria o desejo de felicitá-lo pessoalmente. Contudo, encontrava-se impossibilitado, pois já tinha uma viagem prevista para vinte e seis de maio, na qual a esposa, Regina Gomide, e ele passariam quatro ou cinco meses em Genebra, visitando seu velho pai, seguindo posteriormente para Paris para percorrer a Exposição Internacional de Artes Decorativas e ficar na cidade durante um período indeterminado.
Em abril de 1925, Malfatti, de fato, demarcou que aguardava a chegada de Regina Gomide, brasileira, irmã do também artista Antônio Gomide e John Graz, suíço, que chegou ao Brasil em 1920, onde fez carreira. Tendo esse último estudado no curso de desenho, arquitetura e decoração da Escola de Belas-Artes de Genebra, fez uma exposição no Brasil, na qual conheceu Oswald de Andrade. O escritor adquiriu uma obra do artista e o convidou para participar da Semana de Arte Moderna de 1922 com sete quadros. O suíço ainda teve atuação no grupo modernista paulista que então se formava, colaborando primeiramente na Revista Klaxon, e, na década de 1930, na Sociedade Pró-Arte Moderna, a SPAM, em articulação com Mário de Andrade, Lasar Segall, dentre outros.
De fato, o casal também é citado por Anita Malfatti em cartas enviadas para Mário de Andrade em setembro e novembro daquele ano. A artista confessaria ao amigo no Brasil que era ótimo ter a companhia do casal, que esteve com ela tanto na Exposição de Artes Decorativas, quanto frequentou seu atelier-casa e, eventualmente, produziam coisas em momentos ociosos. A própria Anita narra a passagem de Regina Gomide ensinando técnicas que parecem ser de estamparia e douramento para sua irmã Georgina.
Com os amigos por perto durante tanto tempo, é provável que tenha surgido a ideia de enviar uma Carta-Desenho feita a quatro mãos para Mário de Andrade. Cartas coletivas eram bastante comuns entre os artistas brasileiros que se reuniam em Paris até meados da década de 1920. Há outros exemplares na coleção do escritor que comprovam isso. Nessa escrita em parceria, visualizamos a cristalização de instantes. Memoriais de papel, elas inserem o destinatário em um momento que passou e foi compartilhado entre dois ou mais remetentes, mas que fica ali registrado na confusão do desenho-escrito não planejado, feito em jantares e reuniões, entre uma gargalhada e um gole de bebida.
Vemos a sobreposição dos escritos e dos desenhos, sem nenhum nexo ou ordem de “leitura”, a posição das interferências que acontecem aleatoriamente, a folha que fica girando nas mãos, o olho que tenta decodificar de alguma forma a bagunça dos rabiscos e das imagens sem conseguir encontrar uma linha para seguir ou se orientar. Tudo isso nos mostra a complexidade do ato de traçar, aqui configurado a partir de uma atividade gráfica irregular, repleta de sobreposições, imagens e frases soltas. O registro concreto do encontro realizado entre os remetentes ganha forma material na linha inquieta de diferentes mãos. Podemos inferir que eles tinham como objetivo estabelecer uma visualidade livre de funções e amarras em diálogo com práticas surrealistas, por exemplo. É desenho, é escrita, é carta, é acontecimento visual.
Quando dobrado, de fato, ele se parece com um cartão de grandes dimensões. Em sua materialidade, no entanto, fica claro que se trata de um híbrido. O é de tal forma que gera dúvidas em seu tratamento. Certo, há nele uma ruptura com a compreensão normativa de missiva. Mas não deixa de sê-la por causa disso. Na verdade, quando os artistas abrem mão da linearidade de construção textual para estruturarem seus raciocínios graficamente a partir da visualidade do suporte, aparentemente, fazem surgir outra proposta epistolar. Aqui podemos afirmar que tal tipo de ação acena com a pretensão de estetizar a carta, utilizando-a como um veículo expressivo, resquício de um ato que dilui o texto nas imagens, dispersando poeticamente o sentido da mensagem escrita.
Trata-se de um objeto cuja mescla do pouco texto e as imagens oferecem uma construção na qual as diferentes partes são tratadas sem uma rígida diferenciação ou hierarquia. Nota-se que não há um grau de maior importância do desenho em relação à escrita e vice-versa. No quase quadrado papel cinza de profundo amálgama, temos uma mensagem apresentada entre desenhos-escritos e letras-desenhadas. O traço, elemento de união entre um e outro, coloca tudo em um mesmo plano, criando uma mensagem única e possivelmente geradora de diferentes significados para cada um que a olhe.
O traço confuso de Graz e sutil de Malfatti formam as faces de uma moeda, onde, ao mesmo tempo, inicialmente ambos podem ser “lidos” como texto –intuitivamente tendemos a buscar um começo da esquerda para a direita e de cima para baixo–, mas, por outro lado, é quase inevitável que em algum momento o olhar não se perca em seu percurso, ou viremos a folha para ler algo que não está escrito no sentido padrão de carta. Frases ou palavras soltas aparecem próximas de algum elemento desenhado, quando não o são: entre traços e pequenos círculos, no que seria a parte inferior da capa, lemos no escrito-desenhado a palavra “saudade”, por exemplo.
Em ambas as partes, temos escritos mesclados com desenhos, ainda que a criação de Anita seja mais organizada visualmente, delicada e com bastante espaço vazio na composição. Já John opta por um preenchimento maior dos espaços e contornos robustos tanto no desenho quanto na escrita. Tudo em preto sobre o cinza da folha. A única cor presente nesse objeto é a linha vermelha na parte externa, que contorna as extremidades irregulares do papel, de certa forma fechando a composição.
No que se refere à parte de Malfatti, naquilo que tomamos como uma capa quando o papel se encontra dobrado (Fig. 3), do alto para baixo, encontramos as seguintes palavras: “tinta dos espinhos”, “dorin”, “(outra in extremis)”,[22] “alegria” e “saudades”. Esta última escrita na parte inferior é maior que as demais, em letras desenhadas usando os mesmos recursos visuais – pontos e linhas – do restante do trabalho. No alto, vemos galhos com algo semelhante a flores arredondadas compostas por pequenos traços. Mais abaixo, temos uma série de linhas longas e curtas e uma espécie de cápsula na qual consta a palavra “dorin”, algo que poderia fazer referência a Maison Dorin, que comercializa perfumes em Paris desde o século XVIII.
Na parte interna (Fig. 4), no alto, do lado esquerdo, lemos “céo” acima de traços semelhantes a uma explosão de fogos de artifício, com o escrito na vertical dizendo “rojão lágrimas”, possível citação à livro Pauliceia Desvairada de Mário de Andrade. No canto superior direito, lemos “carta linda”. Pouco abaixo, segue escrito “sua”, ao lado de uma árvore de natal e de uma pomba voando. Embaixo da árvore, vemos escrito “bom natal”. Pouco abaixo da metade do papel, há um horizonte de montanhas com um pôr do sol e novamente uma sequência de traços e pontos. Do lado direito, lê-se: “voz da procissão, Senhor! Senhor!”; e quase na mesma altura, do lado esquerdo, vemos: “Mário Feliz!”. Mais abaixo, seguindo as linhas curvas, lemos “Arco íris, uma tarde inteira”, à direita, e “Anita muito sincera” e “Muito amiga”, à esquerda.
Em uma análise inicial, a Carta-Desenho poderia ser entendida nesse contexto como um alento ao amigo, que não se encontrava em um bom momento. Para ele, o ano de 1925 foi demarcado por doenças e desânimo. No entanto, observando tantos elementos que denotam felicidade, ou até mesmo um posicionamento otimista diante da vida, podemos refletir, também, sobre os ecos íntimos de um contentamento de Anita com o seu momento pessoal e os desdobramentos em sua obra na Europa enquanto bolsista. Podemos destacar alguns exemplos, como o fato de na capa da carta a palavra “alegria” vir antes da palavra “saudade”. A primeira concretamente escrita; e a segunda diluída entre traços e pequenos círculos. Isso pode ser, ao mesmo tempo, aleatório e sintomático, pois o afastamento lhe traria novas questões, ainda que significasse ver menos a família e os amigos. Na parte interna, o escrito “carta linda” sinaliza que, apesar de não se tratar de uma missiva em seu sentido estrito, a artista continuava a entender sua escrita solta entre traços e imagens como uma carta. O ato, portanto, soma imagens de explosão de fogos de artifício e de uma pomba que voa livremente para o alto. Os fogos, geralmente usados em festas e celebrações, são conhecidos por oferecerem um espetáculo de luz, cores e sons. Diz-se, popularmente, que esses elementos afastariam maus espíritos. Ao seu lado, a pomba é um símbolo universal da paz, muito em parte construído por passagens bíblicas. Outra frase significativa nesse contexto é “arco-íris uma tarde inteira”. Não se pode ignorar que o efeito óptico e meteorológico é tido como um arauto de boas novas e, portanto, motivo de esperança. Ele também estaria vinculado a passagens bíblicas, onde ficou conhecido como “arco da aliança” e significaria o vínculo entre Deus e os homens.
Por todos esses elementos, podemos ser levados a crer que há nessa escrita uma narrativa não funcional, que ultrapassa o envio do mero contentamento em forma de mensagem, ou simplesmente a tentativa de animar o escritor com suas palavras e imagens. Ao somarmos os elementos, transparece algo da personalidade da artista que se viu apagada no Brasil. Algo que o próprio Mário colocaria como uma “luta consigo mesma”, que aparentemente durou por toda a sua vida e que oscilou entre momentos de leveza e alegria e de isolamento e silêncio.
Na pequena parte da contracapa, que cabe a John Graz (Fig. 5), vemos no alto uma paisagem composta aparentemente por montanhas, cactos e um rio, raio ou estrada que sai das montanhas e encontra o horizonte. Uma grande variedade de animais e insetos –aranha, cobra, foca (ou boto), peixe, gato, jacaré, mosquito– preenche o espaço do papel. Do alto para baixo, encontram-se algumas palavras agregadas ao desenho: “calor” escrito em uma diagonal sobre a cobra e os cactos, a assinatura “Johny” dentro do corpo da cobra, “febre” sobre o peixe e o jacaré, “medo” saindo da boca deste último animal e “veneno” no canto inferior esquerdo, ao lado do mosquito. Pode-se afirmar que o desenho tem um tom bastante tropical, com animais selvagens e paisagem caracteristicamente brasileira, remetendo-se a um exotismo sombrio da exuberância dos trópicos. Excesso de calor, de bichos, de doenças, que é corroborado pelo abafamento caracterizado pela ocupação da página em uma composição forte e cheia, na qual os animais se misturam uns com os outros, ocupando praticamente todo o espaço que lhe é reservado para desenhar.
A ideia de um estrangeiro que se fixa em representações de elementos característicos do Brasil não é exatamente uma novidade. No entanto, tal desenho não destoa da produção do artista. Segundo informações do Instituto John Graz,[23] nas artes plásticas, ele apresenta como características de seu trabalho um desenho preciso, de forte apelo gráfico, que incorpora a iconografia brasileira, principalmente da cultura popular e indígena, dentro de linhas figurativas e abstratas, assumindo e difundindo as influências modernistas.
Em ambas as partes da Carta-Desenho, os fragmentos de pessoalidade se oferecem tal qual enigmas que enviam mensagens em partes a Mário de Andrade. Algo que não são “apenas desenhos”, mas também não estão ali para embelezar o espaço epistolar. Não têm um começo nem um fim e podem ser “lidos” de várias formas, a partir de inúmeras perspectivas. Veneroso nos auxilia na reflexão sobre essas características, ao comentar que,
«Ungaretti, numa conferência em São Paulo em 1966, elucidou de maneira reveladora, […] sua posição, fazendo a defesa do fragmento como única forma possível de poesia no universo fraturado em que vivemos, onde, em consequência do progresso tecnológico, há uma crise sem precedentes da linguagem. […] Essa “estética do fragmento” pode ser encontrada, de uma maneira geral, [na obra de vários poetas], na sua maneira de lidar com a linguagem e com os valores plásticos e visuais do poema.»[24]
No objeto aqui estudado pode-se inferir que vemos em ação a “estética do fragmento”, ou da fratura, que cria suspensões por meio do pensamento artístico incorporado a um objeto do cotidiano. Ainda que em partes, destaca-se a composição de cada artista, que opta por enquadrar sua proposição visual de forma muito distinta: enquanto um preenche quase plenamente a área, a outra espaça as formas e as figuras, sendo o desenho resultado do diálogo entre as partes vazias e cheias. Em sua materialidade, temos uma “carta visual”, se assim podemos qualificar, com caráter plástico e poético, atuando na ressignificação de um objeto com função definida.
Pode-se dizer que, com base nas descrições, temos a clara dimensão da utilização do desenho como forma textual, linguagem que comunica e traça pequenas narrativas desconexas, construídas enquanto pensamentos, tal qual eles existem na cabeça de quem os “escreveu”. Tal postura dos dois artistas até dialoga com a crença do escritor na proximidade do traço desenhado com a escrita. Contudo, extrapolam seus limites ao trabalharem na fronteira dessa grafia artística e, ao mesmo tempo, literária, encaixando-se naquilo que Derdyk[25] nomeia como “diferentes acessos e experiências com e a partir do desenho”, algo que ajuda a consolidar outras formas de estar e interpretar o mundo.
Considerações finais
O percurso aqui apresentado, nos leva a refletir sobre o princípio que move alguns artistas. Pelo o que parece há a vontade de ultrapassar a ideia de valorização de seus manuscritos pela presença dos desenhos algo que gera a consequente transformação da função da carta e sua reapropriação plástica. Seu caráter híbrido associa instantes, efemeridades, casualidades, irreversibilidades. Temos pequenas ações poéticas enxertadas em objetos do cotidiano, ainda que isso não se formalizasse como uma prática artística naquele momento.[26] O uso dual do traço, tanto no desenho quanto na escrita, nos mostra como, nesses objetos, há acontecimentos artísticos que merecem nossa atenção, pois potencializam o gesto e criam ocorrências de outras ordens ou desordens.
Em suas nuances, podemos pensar que, a partir do momento que são remetidos, lidos e guardados, perdem a ordem natural da percepção do desenho como algo que ilustra e do texto como algo que comunica. A despeito de terem funcionalidade, vemos o desenho e a escrita apresentarem uma espécie de medida de forças com a linha que, como ressalta Kiefer, “define, por excelência, o horizonte e o limite de toda e qualquer escrita ocidental”.[27] Não podemos delimitar até que ponto esse combate tenha sido consciente nesse exemplo. Mas devemos perceber que a busca pelo rompimento com os limites da escrita e consequentemente das características da carta enquanto gênero é o princípio da dualidade desse objeto.
Na dinâmica das ações, as diferentes formas que cada artista assume para interagir com o seu correspondente geram focos de atenção no que diz respeito aos objetos que contêm desenhos-escritos. Eles demarcam e instauram um novo prisma para uma coleção de destaque e já amplamente estudada. Vamos observando os diálogos se consolidarem pela reapropriação do espaço epistolar como algo que vai além da interação entre remetente e destinatário: a carta também é lugar de criação artística. Por outro lado, esse processo de apropriação da carta como lugar de criação, em muitos casos, responde a uma demanda de envio de desenhos colocada por Mário de Andrade. Cada um, a seu modo, faz daquele pequeno espaço um laboratório de experimentação.
Notas
[1] Arquivo IEB-USP, Fundo Anita Malfatti/ Série: Correspondências; Correspondência Passiva; Código de Ref.: AM-04.01.008. Carta remetida por Mário de Andrade a Anita Malfatti em 18 mar. 1924.
[2] Um grupo de intelectuais paulistas fez, em 1924, uma viagem às cidades coloniais mineiras. Entre os integrantes estavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. Tal viagem foi determinante para ospaulistas no sentido de descortinar um novo olhar sobre um Brasil até então por eles desconhecido. Nessa viagem, Mário de Andrade fez vários desenhos que hoje se encontram no acervo do IEB/USP.
[3] Constatação feita a partir de dados levantados em pesquisa realizada entre 2013 e 2017.
[4] A partir de levantamento realizado entre 2013 e 2017 no IEB/USP, o grupo de artistas remetentes de cartas com desenhos para Mário de Andrade é composto por: Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Cícero Dias e Anita Malfatti.
[5] Trata-se de um tipo de álbum organizado entre 1909/1910 com recortes de jornal, chamado por Mário como A Batalha das Notas. Era dividido em partes que dariam conta dos seguintes assuntos: Filosofia, Literatura, Ciências, Histórias Universal, Musica, Geografia, Estatística, Pintura e Escultura. Cf.: Marta Rossetti Batista e Yone Soares de Lima, Coleção Mário de Andrade: Artes Plásticas, São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros/ Universidade de São Paulo, 1998.
[6] Guia IEB/USP, em http://www.ieb.usp.br/guia-ieb-2/ , acesso 04 de julho de 2013.
[7] Guia IEB/USP, “Coleção Mário de Andrade”, em http://sites.usp.br/ieb/wp-content/uploads/sites/127/2016/07/guia_ieb__parte_4_1339452569.pdf , acesso 04 de julho de 2013.
[8] São dois “Do Desenho”. Aquele que consideramos ser o primeiro está publicado no livro Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, que teve a primeira edição após a morte do escritor, no ano de 1965. Em nota inicial da publicação, explica-se que se trata de um artigo deixado por Mário de Andrade em recorte de jornal sem nome e sem data, no qual ele fez algumas correções de linguagem e de erros de revisão. Já o outro texto, trata-se de uma ampliação dos pensamentos possivelmente desenvolvidos anteriormente, acrescido de alguns comentários sobre as obras de Lasar Segall. Foi editado no álbum Mangue de Lasar Segall, publicado pela editora da Revista Acadêmica, em 1943. Há uma reprodução por fac-símile elaborada para a publicação O desenho de Lasar Segall, organizado pela equipe do Museu Lasar Segall em 1991.
[9] Mário de Andrade, “Do Desenho”, em Mário de Andrade, Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, pp. 65-71.
[10] Há apenas dois casos de cartas com desenhos endereçadas a terceiros na Coleção de Artes Plásticas. Apesar disso, elas são do mesmo período das cartas do escritor e vêm de pessoas próximas a ele, mantendo, de certo modo, o padrão de funcionamento do princípio que configura o grupo estudado. Sabe-se que, assim como no caso de muitos manuscritos de outros escritores, possivelmente foram dadas a Mário para que ele as guardasse.
[11] Tomamos aqui como referência a reflexão promovida por Antonin Artaud (1896-1948) em seus questionamentos pessoais sobre a materialização de sua escrita-pensamento. Em seu processo, chegou àquilo que nomeou como desenhos-escritos, criações poético-plásticas que relacionam linha e traço a partir de uma espécie de fratura na linguagem, na qual ele percebe não ser mais possível escrever sem desenhar. Kiefer destaca que “[…] ligadas pelo traço de união escrita e desenho serão pensadas como uma nova prática da linguagem partida”. Cf.: Ana Kiefer, Antonin Artaud: uma poética do pensamento, Coruña, Biblioteca-Arquivo Teatral «Francisco Pillado Mayor», 2003.
[12] Quando descrevemos os objetos definitivamente remetidos, estamos falando de “missivas”, mas o fato de terem sido criadas e não enviadas não as exclui do gênero. Cf.: Geneviève Haroche-Bouzinac, Escritas epistolares, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2016.
[13] Phillipe Lejeune, “A quem pertence uma carta?”, em Jovita Maria Gerheim Noronha (Org.), O Pacto auto biográfico: de Rousseau à internet, Belo Horizonte, UFMG, 2014, pp. 291-294.
[14] “Quoique cela puisse paraître paradoxal, l’une des formes de dessin les plus anciennes est l’écriture. Les blocs de calcaire de points et de traits retrouvés sur le site de La Ferrasie en Dordogne (40000 avant notre ère) pourraient être un système narratif se rapportant à des événements, des rites ou des animaux, et donc constituer une sorte de proto-écriture. Toutes les premières formes d’écriture ont une dette vis-à-vis du dessin, comme le montrent quelques tablettes de Basse Mésopotamie (vers 4000 avant J.-C), et aussi des systèmes complets d’écriture, tels que les hiéroglyphes égyptines, succession de dessin qui parfois ont également une valeur phonétique”. Marco Bussagli, Comment Regarder… Le dessin: Histoire, évolution et techniques, Paris, Hazan, 2012.
[15] Anne-Marie Christin, A History of Writing: from hieroglyph to multimedia, Paris, Flammarion, 2003.
[16] Para Derrida, “é a arquiescrita que permite que esta diferença entre espaço e tempo se articule, aparecendo na unidade de uma experiência. Ela permite que uma cadeia gráfica (visual ou tátil, mas espacial) adapte-se sobre uma cadeia falada (temporal), eventualmente de forma linear”. Cf.: Cláudia de Morais Rego, Traço, Letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan, Rio de Janeiro, 7Letras, 2006.
[17] Barthes destacaria que, “para encontrar imagens sem palavras, será, talvez, necessário remontar a sociedades parcialmente analfabetas, isto é, uma espécie de estado pictográfico da imagem; na verdade, desde o aparecimento do livro, a vinculação texto-imagem é frequente, ligação que parece ter sido pouco estudada do ponto de vista estrutural; qual é a estrutura significante da ilustração? A imagem duplica certas informações do texto, por um fenômeno de redundância, ou é o texto que acrescenta à imagem uma informação inédita?” Cf.: Roland Barthes, “A retórica da imagem”, em Roland Barthes, O óbvio e o obtuso: Ensaios Críticos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
[18] Expressão utilizada pelo Prof. Dr. Alain Pagés (Sorbonne Nouvelle–Paris 3) quando falava sobre a importância de observação da materialidade das cartas, na palestra “Que nous disent les autographes”,proferida no dia 08 de novembro de 2016 como parte das atividades do 4º Colóquio Internacional Artífices da Correspondência: procedimentos teóricos-metodológicos e críticos na edição de cartas, realizado pelo IEB/USP, na Sala de Eventos do Instituto de Estudos Avançados/USP.
[19] A palavra “híbrido” não é utilizada no texto em uma referência ao seu sentido genético de cruzamento entre diferentes espécies, raças, variedades ou gêneros distintos, sendo seu descendente infértil, mas sim no sentido figurado, sobre algo que é caracterizado pela composição feita por elementos diferentes ou até mesmo heteróclitos. Há também seu sentido linguístico – quando se estuda um vocábulo que se forma a partir da junção de palavras pertencentes a outra(s) língua(s), por exemplo, bicicleta: bi (latim), cicle (grego), eta (dim.f., do italiano etta ). Cf.: Dicionário Online de Português, em https://www.dicio.com.br/hibrido/ , acesso 13 de setembro de 2016.
[20] Roland Barthes, “Variation sur l’écriture”, em Éric Marty (org.), œuvres complètes: 1972-1976, Paris, Seuil, 2002, pp. 4.
[21] Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade. Série: Correspondências; Correspondência Passiva; Passiva Lacrada. Código de Ref.: MA-C-CPL3534. Carta remetida escrita em francês por John Graz para Mário de Andrade em 02 abr. 1925.
[22] Expressão do Latim que significa “no último momento” CF.: Larousse, http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/in_extremis/42861 , acesso 21 de janeiro de 2015.
[23] Instituto John Graz, http://www.institutojohngraz.org.br , acesso em 15 novembro de 2014.
[24] Maria do Carmo de Freitas Veneroso, Caligrafias e escrituras: diálogos e intertexto no processo escritural nas artes no século XX, Belo Horizonte, C/Arte, 2012.
[25] Edith Derdyk (Org.), Disegno. Desenho. Desígnio, São Paulo, SENAC São Paulo, 2007.
[26] Sabe-se que ações do Grupo Fluxus a partir de 1963 e a fundação da “New York Correspondance School of Art” por Ray Johnson em 1962 foram fundamentais para a criação daquilo que hoje conhecemos com Arte Postal.
[27] Ana Kiefer, “Limites da Escrita ou como fazer da escrita uma plástica poética?”, Alea: Estudos Neo Latinos, v.10, nº 2, Rio de Janeiro, jul./dez. 2008, pp. 212-226.