O museu como espaço de pesquisa: o caso do MAC

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> autores

Annateresa Fabris

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Historiadora, curadora y crítica de artes visuales. Fue profesora de Historia del Arte Moderno y Contemporáneo  de la Universidad de São Paulo. Publicó, entre otros libros, Fotografia e arredores (2009) y O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas (2011, 2013). Actualmente está escribiendo un libro sobre las relaciones entre la fotografia y las nuevas figuraciones de los años 1960.

Recibido: 11 de noviembre de 2014

Aceptado: 27 de febrero de 2015





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> como citar este artículo

Fabris, Annateresa; “O museu como espaço de pesquisa: o caso do MAC-USP”. En caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). No 6 | 1er. semestre 2015. pp 44-51

> resumen

A pesquisa numa instituição museológica abarca várias tarefas: constituição e estudo de uma coleção, restauro, conservação e publicações. Essas diferentes funções serão analisadas a partir da atuação do Museu de Arte Contemparânea da Universidade de São Paulo, que se distingue como um espaço de fruição reflexiva e de abertura à inovação crítica e historiográfica.

Palabras clave: pesquisa, museu, coleção, memória, história

> abstract

Research in a museum embraces several functions: constitution and study of a collection, restoration, conservation and publications. Those various functions would be analysed from the actions executed by the Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, that distinguishes itself as a space of reflective fruition and of opening to a critical and historiographical innovation.

Key Words: research, museum, collection, memory, history

O museu como espaço de pesquisa: o caso do MAC

Em King of the confessors (1981), Thomas Hoving, que foi diretor do Museu Metropolitan, de Nova Iorque, entre 1967 e 1977, enuncia o próprio método para analisar uma obra de arte. Tomando como pressuposto que o “humor vital” do Metropolitan era o colecionismo, definido como “caça”, “captura” e “ato de paixão, tenso, visceral, intelectual, extremamente sério e, todavia, divertido”, o autor enumera as etapas de um trabalho duro, comparável ao de um detetive. Cabe ao curador de uma coleção ser um connaisseur, um “olho”, capaz de reconhecer “a qualidade de todas as obras de arte em todos os campos e em gradações sutis”. Para tanto, é necessário estudar e reestudar as obras que integram uma coleção, pois só “tocando, sentindo, perscrutando”, é possível compreender sua qualidad.[1].

Para conseguir seus objetivos, Hoving vale-se de um “procedimento sistemático”, que lhe permite investigar uma obra em profundidade. A coisa mais importante é, a seu ver, o registro veloz da primeira resposta a um objeto, a fim de captar uma “reação óptica absolutamente instantânea”. Esse momento é seguido por uma descrição “pormenorizada e pedante do objeto” e por sua análise a partir de vários ângulos e de diferentes distâncias. A segunda etapa diz respeito à averiguação da condição material da obra. Em seguida, são abordados a questão do estilo e o tema. Estes abrem caminho para a iconografia, que é de grande ajuda para determinar a autenticidade de uma peça. Chega então o momento da análise da documentação, que envolve a averiguação da autenticidade das fontes, a consulta de todos os livros e artigos dedicados ao assunto e, quando necessário, a colaboração de algum colega confiável. A última tarefa consiste nas análises científicas feitas no laboratório do museu, sujeitas, porém, à primazia do “olho”. Cumpridas essas etapas, impõe-se a volta à “primeira impressão instintiva”:

 

Era uma peça de qualidadeCrescia, tornava-se mais bela? Penetrava nos recantos mais profundos de meu coração? Despertava minha paixão? E aquela paixão aumentava, tornando-me incapaz de resistir ao desejo de tocar a obra, de acariciá-la como se fosse uma mulher? Desejava possui-la intensamente? Se era assim, mexia-me para obtê-la.[2]

 

Algumas etapas desse trabalho de investigação são esmiuçadas por Hoving, quando lembra a proposta de aquisição de um baixo-relevo românico que representava a Anunciação. Diante da reação negativa dos colegas do setor medieval do museu, aos quais mostrara a fotografia da peça enviada por um marchand, o autor resolve consultar os livros da biblioteca institucional dedicados à escultura italiana do período românico. Não encontrando nada, recusa a proposta, mas não devolve a imagem, pois tinha a impressão de já ter visto algo similar. Deixa passar alguns dias e estuda sua primeira reação diante da fotografia. Como esta revela ser positiva, decide fazer a análise estilística. Nesse momento, descreve o próprio método, que é interessante reter: captura mental dos elementos estilísticos básicos e confronto do objeto com um período histórico geral; circunscrição da pesquisa a um decênio, uma região, um ateliê ou um artista específico; reunião da maior quantidade possível de fotografias e seleção daquelas que mantêm uma relação estilística, mesmo mínima, com a peça em exame; nova seleção com descarte das imagens menos pertinentes até focalizar, progressivamente, o objeto.[3]

Hoving busca o material para essa averiguação visual na biblioteca do museu. Consulta, a princípio, trinta livros, nos quais separa cinco esculturas bastante semelhantes à Anunciação, que o induzem a realizar um exame mais profundo das esculturas românicas toscanas dos séculos XII e XIII. Encontra sessenta livros sobre o assunto e começa a consultá-los. Quando estava pensando em renunciar à pesquisa, seu olho cai sobre uma nota de rodapé, que remetia a um artigo publicado em 1906. Nele encontra “uma minúscula fotografia”, levemente desfocada, que confirma sua primeira intuição,[4] determinando a aquisição da obra.

Embora um tanto longo, o relato de Hoving é de grande interesse, pois envolve a problemática da pesquisa, que é o elemento discriminador da ideia de museu como “gerenciador de cultura”. Como lembra Marlene Suano, as tarefas iniciais do museu estão associadas ao “coletar” e ao “estudar”; a elas segue-se o “expor com fins educativos ou de lazer”. “Coletar” e “estudar” são “passos diversos da pesquisa científica”, não havendo uma distinção marcada entre ambos. De acordo com a autora, a coleta:

 

não deveria jamais ser feita a esmo mas sempre dentro de um projeto de estudo bem delineado e com critérios precisos. A coleta responderia, assim, a indagações bem definidas de tal projeto. Além do mais, tanto o projeto quanto os critérios que o norteiam devem ser bem explicitados para que as conclusões possam ser checadas e para que todo o trabalho tenha validade futura, quando outros cientistas precisarem de tal pesquisa para o andamento de outros trabalhos.[5]

 

Elemento fundamental da musealização, ou seja, da fase ativa do processo de conservação de um objeto, recuperado para desenvolver uma função antes de tudo cultural,[6] a pesquisa ajuda a afastar do museu as pechas de ser apenas uma escola (vontade didática e preocupações historicizantes), uma prisão (vigilância, barreiras, proibições) e um hospital (preocupação exclusiva com o restauro),[7] tão correntes num passado não muito remoto. Sem a pesquisa não seria possível articular uma nova ideia de museu, já que a memória encerrada nele não é um mero acúmulo de objetos organizados de maneira cronológica e monótona. A pesquisa pode fazer com que o museu ponha em xeque visões consolidadas e linhagens apenas históricas, abrindo caminho para querelas e oposições, polêmicas e recusas. Desse modo, a memória se torna produtiva: autoriza aproximações súbitas ou circuitos transversais, retira o objeto de seu isolamento, reconhece a existência de similitudes na rede mnemônica.[8]

A relação entre pesquisa e memória pode servir de alerta para o perigo, sempre presente, de justificar tudo o que constitui um acervo, sem discernir entre o qualitativo e o não qualitativo, entre o que é realmente importante e o que é secundário ou acessório. Tomando como parâmetro o acervo inicial do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – proveniente das doações de Francisco Matarazzo Sobrinho, Yolanda Penteado e do Museu de Arte Moderna de São Paulo –, é evidente que nele a presença de peças de boa qualidade é acompanhada por obras insignificantes e/ou secundárias, as quais, por vezes, mal cabem na concepção de arte moderna vigente na época de sua constituição. Se esse quadro diz muito do momento em que a coleção foi organizada, permitindo esquadrinhar o gosto do mecenas e do grupo que o assessorava e os critérios dos júris de premiação das primeiras Bienais, é necessário que a instituição traga a público as antinomias que estão na base dessa seleção, as hesitações, as escolhas equivocadas, as apostas que não vingaram, sem transformar toda e qualquer peça numa obra portadora de uma profunda significação para a história da arte.

 

O museu não pode colocar tudo no mesmo patamar, embora nem sempre seja fácil desenvolver uma autocrítica cerrada. Uma pesquisa cuidadosa, porém, pode ajudar a enfrentar essa tarefa espinhosa sem cair numa visão excludente a priori. Nesse exercício de autocrítica, o “olho” exaltado por Hoving é um elemento fundamental. Como não se trata de um dom inato, e sim do fruto de um conhecimento profundo da arte de um período, da frequentação assídua de museus e galerias, do contato direto com obras e mais obras, cabe a ele ajudar o pesquisador a discernir qualidades e peculiaridades das peças em exame.

 

Ao refletir sobre o núcleo inicial da coleção do MAC/USP, Aracy Amaral não deixa de assinalar “uma ausência de critérios” em sua constituição e a falta de uma diretriz didática “tendo em vista a informação ao grande público” e de “um elenco de prioridades”. Esta observação estende-se para o desempenho geral da instituição, que não contava em seu orçamento com uma dotação anual de verbas para aquisição de obras. Amaral enumera pontualmente as lacunas existentes na coleção em 1983, ano da realização da mostra Uma seleção do acervo na Cidade Universitária. Faltavam nela pinturas de nomes significativos da arte latino-americana, da “nova escola norte-americana que despontava com vitalidade nas Bienais de Veneza e São Paulo dos anos 60”,[9] da pintura abstrato-expressionista e de “obras mais expressivas de Portinari, Rego Monteiro, Segall e Ismael Nery”. Esse diagnóstico tem como objetivo alertar para a necessidade de “preenchimento das lacunas da coleção” para que o museu pudesse “cumprir sua meta de informar o público (…) sobre o que se passa em arte contemporânea não apenas no mundo ocidental como em nosso país em particular”.[10]

 

Se a questão da pesquisa está implícita nas lacunas apontadas, a então diretora do MAC/USP abre outra frente investigativa quando faz referência à necessidade de elaborar uma reflexão sobre a coleção e sua história. Essa tarefa estava associada à Divisão Científica, criada em sua gestão, que deveria se incumbir da classificação dos documentos relativos à atuação do MAM e do MAC, já que estes continham informações interessantes e preciosas “para a organização de nossa história cultural mais recente”.[11]

 

Tarefa fundamental para que a história da instituição pudesse ser estudada em suas diferentes implicações, a organização da documentação havia sido antecedida por um trabalho ainda mais urgente: o levantamento das obras que integravam o acervo, cujo resultado foi a publicação do catálogo geral em 1972. Em sua introdução, Walter Zanini destaca o empenho das pesquisadoras Daisy Peccinini de Silva, Harumi Yamagishi e Elvira Vernaschi “numa tarefa que exigiu minuciosa verificação dos procedimentos técnicos, um novo levantamento das medidas, a averiguação de datas, além de questões de ordem biográfica, na sua maior parte resolvidas satisfatoriamente”. Embora a publicação se intitulasse Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: catálogo geral das obras, Zanini lembrava que os registros nela contidos não eram completos. Não estavam incluídos nela exemplos de arte efêmera, documentados por fotografias e diapositivos, as obras do setor fotográfico, cujo acervo se encontrava “em fase preliminar de organização”, e o material de arquitetura que, por sua natureza, “exigirá no futuro a edição de um catálogo especial”.[12]

 

A pesquisa num museu não se limita às tarefas até agora enumeradas. Ela abarca também atividades de restauro, conservação e publicação. Restauro e conservação não são atividades   meramente técnicas, “serviços de reparo”, pois são realizadas “dentro de um contexto de dupla pesquisa”. A primeira etapa da pesquisa abarca a atuação do restaurador, que envolve não apenas habilidade manual e domínio das técnicas artísticas, mas também o conhecimento de princípios científicos provenientes da química, da física, da biologia etc. Cabe ao restaurador tomar decisões sobre a melhor maneira de reconstruir a unidade da obra, evidenciando integrações e facilitando intervenções futuras. Esse primeiro momento, em que estão em jogo o “texto autêntico” da obra e a matéria que a compõe, é seguido por um segundo nível de pesquisa, de competência do especialista encarregado do estudo científico. Este deve orientar o restaurador na busca de determinadas respostas. Por outro lado, em cada passo da ação de restauro, o historiador pode encontrar informações novas a respeito da peça que está sofrendo a intervenção, sendo o responsável direto pela determinação do momento em que o processo deve parar.[13]

A preocupação do MAC com a conservação do próprio acervo e as relações dessa etapa com a pesquisa podem ser observadas na mostra Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana do entreguerras (2013). Os quadros Natureza-morta (1946), de Mario Mafai, Nu inacabado (1943), de Felice Casorati, Pintores ao ar livre (1919) e Marinha (s.d.), de Virgilio Guidi, e Paisagem (1946), de Mario Sironi, foram sujeitos a vários testes no Instituto de Física da USP, que determinaram, por exemplo, o grau de conservação dos materiais empregados e as características físicas das obras em termos gerais. O uso de uma técnica como a refletografia de infravermelhos possibilitou a descoberta, no verso de Marinha, da presença de uma paisagem por baixo de um retrato. A aplicação da técnica radiográfica a outro quadro de Sironi, Composição (1931), permitiu averiguar a existência de um pentimento, ou seja, da eliminação de uma figura da composição. Se esses dados podem suscitar hipóteses que levarão a novos estudos, é importante lembrar que o museu já demonstrara, no passado, interesse em divulgar as fases de um tipo de intervenção pouco conhecido pelo público com a produção do caderno Estratigrafia do mural “A santa ceia” de Antonio Gomide (1986), que foi resultado de um trabalho realizado pelo Setor de Conservação e Restauro.

As publicações estão estritamente vinculadas à produção científica e cultural do museu, constando de catálogos, folhetos, boletins, livros e, quando possível, de revistas especializadas. No caso do MAC, não se pode deixar de assinalar o empenho demonstrado por Zanini, desde o começo, em divulgar as atividades institucionais por meio do Boletim Informativo e da publicação de catálogos, que podiam dar destaque a um núcleo da coleção ou ser decorrência de mostras temporárias. O Boletim Informativo era uma espécie de periódico mimeografado,[14] que fornecia informações sobre a programação do museu (exposições, cursos, palestras e outras atividades), sobre doações e aquisições de obras, análises de mostras, listas de artistas selecionados para coletivas, convênios etc.

Nos momentos iniciais do museu, o pequeno catálogo Cubistas e futuristas (1965) representa a tentativa de dar realce a cinco obras que abriam “a visitação cronológica ao acervo”: três pinturas cubistas e duas esculturas “fundamentais na história do futurismo”. A falta de adjetivação para os quadros de Albert Gleizes, Jean Metzinger e André Lhote é seguida pela remissão de suas pesquisas ao âmbito do cubismo, “que tem em Picasso, Braque e Juan Gris suas grandes forças imaginativas”. Caracterizado por avanços e recuos, o texto de Zanini rege-se, simultaneamente, pela percepção de que os três pintores eram figuras menores no âmbito da vertente e pela tentativa de valorizar o acervo, ao apresentar seus quadros como “uma contribuição significativa à arte deste século”.

Se a atitude do então diretor poderia encontrar justificativa na pouca idade do museu e na necessidade de lançar uma luz positiva sobre a coleção herdada do MAM, o momento atual impõe outra tarefa: a revisão crítica. É necessário reconhecer que as obras de Lhote se inscrevem num academismo atualizado, que se apropria dos aspectos mais superficiais do cubismo. Mesmo que Gleizes e Metzinger tenham compreendido a importância da vertente, isso não significa que tenham percebido “suas conclusões lógicas”, como haviam feito instintivamente Pablo Picasso e Georges Braque e, num nível mais intelectual, Gris. Não tendo experimentado uma fase de profunda análise e reflexão, os dois artistas não dispunham daquela disciplina técnica que lhes permitiria inventar, por conta própria, um tipo de pintura ao mesmo tempo alusiva e mais livre, como escreve John Golding.[15]

Tendo em vista as considerações da historiografia sobre esses artistas, o “núcleo cubista” do MAC, que inclui também Natureza-morta (s.d.), de Georges Braque, deveria ser objeto de um estudo atento para não criar no público a falsa impressão de estar entrando em contato com o “processo mental” da vertente, como Zanini afirmava em 1965. Essa tarefa tornar-se-á ainda mais urgente se for lembrado que na instituição, responsável por um conjunto de disciplinas de graduação e pós-graduação, se defende a ideia de que o museu é um laboratório, “que coloca à prova ou questiona” o que é ensinado nos manuais de história da arte. É indubitável que o contato direto com as obras do acervo pode propiciar uma “formação diferenciada”,[16] mas isso pressupõe uma necessária tarefa crítica: conscientizar os alunos de que as obras do museu não são evidências dos objetivos da poética cubista, mas provas de sua domesticação (mesmo no caso de Braque), de sua academização, sobretudo em termos de cor, desenho e composição. Se o MAC se engajar nessa revisão estará fornecendo argumentos suplementares a um estudo crítico não só da vertente, mas sobretudo do modernismo brasileiro, uma vez que vários de seus expoentes entraram em contato com a “academização” do cubismo, codificada por Gleizes e Metzinger no livro Sobre o cubismo e sobre os modos de compreendê-lo (1912).

Ao longo de sua atuação, o MAC dedica várias mostras, acompanhadas de catálogos, a setores específicos da coleção. Di Cavalcanti: 100 obras do acervo (1976), Exposição-homenagem a Francisco Matarazzo Sobrinho (1977), 70 gravadores brasileiros (1979), Artistas italianos na coleção do MAC (1985), Artistas japoneses na coleção do MAC (1985), Espanhóis no acervo do MAC-USP (1994), Sonho e construção: artistas latino-americanos no acervo do MAC (1994), Arte conceitual e conceitualismo: anos 70 no acervo do MAC-USP (2000) e Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana do entreguerras (2013) são alguns exemplos dessa preocupação em dar destaque a conjuntos significativos ou a obras referenciais por meio de reorganizações e reavaliações, que ajudam a esclarecer a história da instituição.

Entre os catálogos das mostras temporárias realizadas durante a gestão de Zanini, cumpre destacar os dedicados à revisão do modernismo, caracterizados por uma preocupação de caráter historiográfico. “Primeiro passo no sentido da recuperação do artista”,[17] a retrospectiva de Antonio Gomide (1968) é seguida pelas consagradas a Tarsila do Amaral (1969), Vicente do Rêgo Monteiro (1971), Ernesto de Fiori (1975), Mário Zanini (1976) e Anita Malfatti (1977). Em gestões posteriores são resgatadas as trajetórias de outros modernistas: Ismael Nery (1984), Emiliano Di Cavalcanti (1997), Roberto Burle Marx (1997), Francisco Rebolo Gonsales (2002), (Fig. 1) e Aldo Bonadei (2006).

Durante a gestão de Aracy Amaral, o museu começa a debruçar-se sobre a própria história. É o que demonstra o livro Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: perfil de um acervo, coordenado por Amaral e publicado em 1988 graças ao patrocínio da Techint Engenharia. A publicação, que inclui resenhas críticas das obras selecionadas, abre-se com um ensaio alentado, de autoria da organizadora, a qual, valendo-se de fontes primárias localizadas em diversos arquivos, traça uma primeira história da instituição, num percurso que analisa a constituição e a dissolução do MAM e o significado da presença de um museu de arte na Universidade de São Paulo. A transferência do legado do MAM para o MAC merece uma reflexão pontual. A autora, que vê no MAM um “animador cultural”, o “veiculador de novas tendências” por sua ligação com a Bienal de São Paulo, afirma, sem rodeios, que o MAC conseguira levar a tarefa adiante “parcialmente” e “a despeito de ser da Universidade”.[18]

As pesquisas realizadas no museu foram também divulgadas por veículos externos. É o caso do livro de Cristina Freire, Poéticas do processo: arte conceitual no museu, dedicado ao acervo das chamadas tendências desmaterializadas – constituído durante a gestão de Zanini – e publicado em 1999 pela editora Iluminuras.[19] E do ensaio “Da fotografia como arte à arte como fotografia: a experiência do Museu de Arte Contemporânea da USP na década de 1970”, que Helouise Costa divulgou, em 2008, por meio da revista Anais do Museu Paulista.

Mais recentemente, o MAC começou a investir numa linha de publicações, em que a revisitação de obras presentes em seu acervo ou de exposições paradigmáticas realizadas nele, é acompanhada não só de textos críticos, mas também de documentos que ajudam a mapear a atuação dos artistas. Trata-se da coleção “MAC Essencial”, cujos primeiros resultados são dois volumes publicados em 2012, dedicados a expoentes do conceitualismo como Hervé Fischer e Isidoro Valcárcel Medina. Na apresentação do livro sobre Fischer, o então diretor, Tadeu Chiarelli, estabelece um vínculo indissolúvel entre o exercício da curadoria e a pesquisa:

 

Como museu universitário, uma das singularidades do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo é pautar suas exposições em estudos sobre seu acervo, realizadas por seu corpo de profissionais ligados à pesquisa e à docência.

Neste sentido, a grande maioria das mostras que o MAC USP apresenta é resultado parcial ou definitivo de estudos extensos que se dão a partir do embate do docente-pesquisador com as obras pertencentes ao acervo do Museu e também com documentos, os mais variados, que possam conferir novas perspectivas de análise para determinadas obras ou para um conjunto delas.[20]

 

Se Chiarelli defende acertadamente a ideia da pesquisa “como espaço/tempo de produção de novos sentidos para as obras do acervo e, em concomitância, formação de novos quadros profissionais”,[21] não se pode esquecer que o museu é igualmente um laboratório para o artista. Como esclarece François Dagognet, o artista admira nele o passado, mas “aprende sobretudo a entrever e a produzir o futuro”. O contato com a tradição é importante para conseguir mantê-la a distância, num jogo constante de inovação e mudança. Por isso, o museu não deve ser visto como uma “golilha”, um “sistema hostil à criação”, um gerador de academismo,[22] mas antes, como um lugar aberto à inovação crítica e historiográfica e à experimentação artística. Interessado em fazer do MAC um laboratório, Zanini desejava estabelecer uma “relação revolucionária” com o artista. Isso significava que os espaços do museu não deviam ser concebidos apenas como “lugares de conservação de objetos”, mas, antes de qualquer coisa, como centros abertos a manifestações variadas e atividades criativas, capazes de envolver o público “em possibilidades reais de participação efetiva no processo da arte”.[23] Para tanto, Zanini conta com o apoio e o incentivo dos artistas, que se engajam, junto com ele, na organização de exposições, cursos, palestras e na transformação do museu num fórum de debates. Pensado como um “espaço operacional”, o MAC “deixa de entrar em cena depois da obra, tornando-se concomitante a ela”; age “no núcleo das proposições criadoras”, reconhecendo abertamente que “a participação direta dos artistas é decisiva”.[24] Sobretudo na década de 1970, o MAC afirma-se como um espaço de conhecimento e de colaboração com a cultura artística do momento e, logo, de experimentação (Fig. 2). Ao estabelecer uma continuidade dialética entre obras já dotadas de perspectiva histórica e as propostas e pesquisas emergentes, Zanini demonstra ter compreendido não só “o valor ativo e produtivo” do museu de arte contemporânea, mas igualmente sua função educativa, como lembra Franco Russoli em suas reflexões sobre esse tipo de instituição.[25]

Se a transformação de coleções particulares em museus públicos, ocorrida a partir do século XIX, marca “o ato de fundação da ciência no âmbito museológico”,[26] é provável que a polêmica decisão de Matarazzo Sobrinho de transferir o acervo do MAM para a Universidade de São Paulo possa ganhar novos contornos. A questão das múltiplas funções de um museu pode ser vista como um elemento determinante da doação; como escreverá posteriormente Fernando Azevedo de Almeida, só a Universidade poderia “fazer aquilo que, mesmo com muita boa vontade, não conseguiria realizar um grupo restrito de artistas”.[27]

Ao longo de seus cinquenta anos de existência, o MAC, apesar de inúmeras dificuldades e dos entraves burocráticos advindos de sua localização numa estrutura ossificada como a Universidade de São Paulo, demonstrou ter condições de transformar-se num centro referencial de difusão da criação artística e de produção de uma pesquisa historiográfica qualificada. Não é improvável que isso seja decorrência da percepção de que ele é “um museu na Universidade” e não “um museu universitário, atrelado a um Departamento de uma escola de Artes”, como escrevia Aracy Amaral nos anos 1980.[28] Ser um museu na Universidade significa que o MAC não deve ver-se apenas como um lugar de conservação de obras e de pesquisa especializada, um arquivo, um laboratório, um instrumento de informação em diversos níveis culturais. Se tais tarefas definem os deveres sociais de qualquer museu, a elas deve ser acrescentado aquele que Franco Russoli considerava o principal objetivo desse tipo de instituição:

 

ser um instrumento maiêutico, de conhecimento problemático da natureza e da história, que não leve a uma doutrinação dogmática, mas que forneça material e oportunidade para um “juízo” livre, espontâneo, até mesmo contestador, formado por meio do contato direto (seja ele de caráter estético, histórico ou científico) com os documentos originais da evolução da vida da natureza, da sociedade, do homem.[29]

 

 

Numa época em que o museu se confunde frequentemente com o espetáculo, a feira, a loja de departamentos, a diversão de massa e as “maravilhas” da Disneylândia,[30] a atuação discreta do MAC demonstra que podem existir núcleos de resistência à banalização da arte, graças a uma compreensão profunda das funções primordiais da instituição museológica e de suas possibilidades ideais, a começar pela problematização do conhecimento oferecido por ela. À máquina de imagens contemporânea o MAC contrapõe uma máquina de ideias, que deseja conquistar o público de maneira própria: pela via de uma fruição reflexiva, já que o momento atual não oferece mais a possibilidade de testar e contestar os limites expositivos (Fig. 3).

 

 

Notas

[1] Thomas Hoving, Il re dei confessori, Milano, Rizzoli, 1982, p. 35.

[2] Ibídem, pp. 35-38.

[3] Ibídem, p. 65.

[4] Ibídem, pp. 66-67.

[5] Marlene Suano, O que é museu, São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 74-75.

[6] Franco Minissi, Conservazione dei beni storico artistici e ambientali: restauro e musealizzazione, Roma, De Luca, 1978, p. 37.

[7] François Dagognet, Le musée sans fin, Seyssel, Éditions du Champ Vallon, 1984, p. 31.

[8] Adaptação das ideias de Dagognet (op. cit., pp. 69-70) para a problemática da pesquisa.

[9] Neste momento, o museu tem a guarda provisória do quadro Modern painting with yellow interweave, executado por Roy Lichtenstein em 1967.

[10] Aracy Amaral, “Apresentação”, em Uma seleção do acervo na Cidade Universitária, cat. exp., São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1983, pp. 11-14.

[11] Ibídem, p. 15.

[12] Walter Zanini, “Introdução”, em Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: catálogo geral das obras, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1972, p. 11.

[13] Marlene Suano, op. cit., pp. 77-78; Cesare Brandi, Teoria del restauro, Torino, Einaudi, 1977, pp. 17-18, 49.

[14] Dária Jaremtchuk, “MAC do Zanini: o museu crítico do museu”, em Emerson Dionísio G. De Oliveira; Maria de Fátima Morethy Couto (orgs.) Instituições da arte, Porto Alegre, Zouk, 2012, p. 84.

[15] John Golding, Le cubisme, Paris, Le Livre de Poche, 1968, pp. 349-350, 356.

[16] Ana Gonçalves Magalhães, Memorial, São Paulo, MAC/USP, 2014, p. 23.

[17] Walter Zanini, apud: Dária Jaremtchuk, op. cit., p. 72.

[18] Aracy Amaral, “A história de uma coleção”, em Amaral, Aracy (org.) Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: perfil de um acervo, São Paulo, Techint, 1988, p. 32.

[19] O interesse do MAC em estudar o acervo de obras conceituais desdobrou-se no seminário “Conceitualismos do Sul/Sur”, realizado em abril de 2008. Seus resultados foram publicados em 2009 no livro homônimo, organizado por Cristina Freire e pela pesquisadora argentina Ana Longoni e coeditado pela Annablume, pelo MAC e pelo AECID.

[20] Tadeu Chiarelli, “Estudos de uma vida toda”, em Cristina Freire (org.) Hervé Fischer no MAC USP: arte sociológica e conexões, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012, p. 9.

[21] Tadeu Chiarelli, “Fora do limbo museológico. Finalmente”, em Cristina Freire (org.) “Não faço filosofia, senão vida”: Isidoro Valcárcel Medina, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012, p. 9.

[22] François Dagognet, op. cit., p. 71.

[23] Walter Zanini, “Rapporti tra istituzioni e artisti”,em: Haskell, Francis (org.), Saloni, gallerie, musei e loro influenza sullo sviluppo dell’arte dei secoli XIX e XX, Bologna, CLUEB, 1981, p. 179.

[24] Cristina Freire, Arte conceitual, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, pp. 26-27.

[25] Russoli, Franco, “Il museo d’arte moderna come centro di documentazione storica e di indicazione culturale”, em: Il museo nella società: analisi proposte interventi. 1952-1977, Milano, Feltrinelli, 1981, p. 31.

[26] Pinna, Giovanni, “Per un museo moderno”, em: Binni, Lanfranco; Pinna, Giovanni, Museo: storia e funzioni di una macchina culturale dal cinquecento a oggi, Milano, Garzanti, 1980, p. 143.

[27] Almeida, Fernando Azevedo de, O franciscano Ciccillo, São Paulo, Pioneira, 1976, p. 178. Sobre o fim do MAM, ver: Fabris, Annateresa, “Um fogo de palha aceso’: considerações sobre o primeiro momento do Museu de Arte Moderna de São Paulo”, em: MAM 60, cat. exp., São Paulo, Museu de Arte Moderna, 2008, pp. 81-89.

[28] Amaral, Aracy, “A história de uma coleção”, Op. cit., p. 32.

[29] Russoli, Franco, “Il museo come elemento attivo nella società”, em: Op. cit., pp. 7-8.

[30] Couto, Maria de Fátima Morethy, “Museus de arte e crítica institucional”, em: Oliveira, Emerson Dionísio G. de; Couto, Maria de Fátima Morethy (orgs.), Op. cit., p. 25; Dagognet, François, Op. cit., p. 70.