Annateresa Fabris
O desafio do Olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas, Volume II.
São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2013, 353 páginas
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Niura Legramante
Doutora em Artes Visuais da UFRGS (2013), é Mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1995). Realizou Estágio de Doutoral, na Université Paris-I, Panthèon Sorbonne, Paris, França, com orientação do prof. Dr. Michel Poivert. Professora em várias universidades do Rio Grande do Sul. Desde 1997 é Professora de História Teoria e Crítica da Arte no Atelier Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Professora dos cursos de Graduação e de Especialização em Artes Visuais, na Universidade Feevale, RS. Tem trabalhos de pesquisa na área teórica de Artes, especialmente, com ênfase em Fotografia e Artes Visuais na contemporaneidade. Escreve para revistas especializadas, livros de arte e para catálogos de exposições de artistas.
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Niura Legramante Ribeiro; «O desafio do Olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas, Volume II». En Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 3 | Año 2013 en línea desde el 4 julio 2012.
A fotografia ligada às práticas artísticas das vanguardas históricas deve ocupar um lugar importante na historiografia, dadas as contribuições inovadoras que propiciou à arte moderna e as mudanças de percurso nos rumos da arte produzida na primeira metade do século XX. A imagem técnica, nesse período, realizou incessantes buscas por novas modalidades de visão, cujas imagens lutavam pela desnaturalização do real e por visualidades que colocavam em xeque a ideia de composição tradicional. É nesse sentido que caminham as abordagens empregadas pela pesquisadora brasileira Annateresa Fabris no livro O Desafio do Olhar, fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas, volume II, publicado em 2013. Esse livro dá prosseguimento a outras pesquisas da autora sobre a imagem técnica e as relações com a arte dessa época, que integram o volume I, publicado em 2011.
No primeiro volume, a autora reflete sobre o impacto causado pela fotografia nas práticas artísticas tradicionais de forma a gerar uma revisão e redefinição de conceitos da arte e de artista; segundo afirma a autora, o surgimento da fotografia colocava em pauta as concepções de criação, autoria e originalidade num momento dominado pela ideologia do “eu romântico”.[1] Se a fotografia trouxe novos modos de visualização do real aos artistas, por outro lado, a imagem tecnológica buscou recursos de composição em modelos pictóricos, na tentativa de conseguir um estatuto artístico para si. O primeiro capítulo desse primeiro livro, “Na encruzilhada: arte e fotografia no começo do século XX”, trata justamente dos diálogos da imagem técnica com o universo da pintura, da questão da fotomontagem, exemplificada, entre outros, pela obra do fotógrafo Oscar Gustav-Rejlander, e da questão da fotografia pictorialista, com suas implicações estéticas ao tentar desconstruir suas qualidades expressivas intrínsecas. O segundo capítulo, “A convergência com a ciência: o movimento como trajetória”, aborda as pesquisas dos fotógrafos Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge sobre os registros de deslocamentos de corpos humanos e de animais no espaço. A partir dessas reflexões, Fabris analisa como essa pesquisa científica reverberou em determinadas obras de artistas, como Rodin, Degas, Pissarro e Duchamp, e, sobretudo, na representação do movimento pelas obras do fotodinamismo futurista. No último capítulo, a historiadora trata sobre “A convergência com os meios de comunicação de massa”, por meio de três estudos de casos, sendo dois destes sobre fotomontagens, uma de caráter político, com trabalhos de John Heartfield, e a outra de obras realizadas na Rússia pós-revolucionária, como de Ródtchenko e Lissitzky, fechando o capítulo com estudos de quadros realizados por Francis Picabia na década de 1940, realizados com base em ilustrações fotográficas encontradas em revistas populares.
No segundo volume do livro, Annateresa Fabris dedica-se à reflexão sobre outras duas importantes manifestações da fotografia no contexto das vanguardas históricas: o surrealismo e a nova visão. No decorrer de suas análises sobre obras pontuais de artistas que integraram essas manifestações, a autora dialoga com posturas de vários autores que se debruçaram sobre o assunto, realizando, muitas vezes, reparos sobre o entendimento de determinadas questões por eles abordadas.
No primeiro capítulo, “A epifania das aparências: a visão surrealista”, a autora pontua suas reflexões em três eixos: a relação de Breton com a fotografia, os significados das colagens e fotomontagens de Max Ernst e Joan Miró e os múltiplos usos da fotografia por Man Ray em consonância com os pressupostos estéticos dos surrealistas.
Partindo da análise do significado da fotomontagem A escrita automática (1938), na qual a imagem de Breton aparece associada a um aparelho microscópio, e somando-se à leitura do texto A escrita automática (1933), a pesquisadora analisa as relações entre o aparelho microscópio e o aparelho fotográfico, evidenciando um paralelo entre o princípio de automatismo da máquina e da escrita automática. Contrariando uma visão corrente de historiadores e críticos que minimizam o lugar que a fotografia ocupou nos interesses de Breton, Fabris procura demonstrar que o escritor “colocava a fotografia na própria origem do Surrealismo”.[2] Para isso, pontua suas reflexões tendo como parâmetro os princípios surrealistas identificados nas fotografias que ilustram publicações dessa tendência – A Mensagem Automática (1933), La Clé des Champs (1953), Nadja (1928), O Amor Louco (1937) e Os Vasos Comunicantes (1932) – e na conferência de Breton, Situação Surrealista do Objeto (1935).
Em Nadja, Fabris analisa a presença das fotografias em relação às narrativas do livro – imagens de iconografias de Paris, entre outras, realizadas por Jacques-André Boiffard, e um conjunto de retratos, entre os quais, alguns executados por Ray e por Henri Manuel. A Paris de Breton nas fotografias, segundo a autora, “não é a dos cartões postais, mas de uma cidade antimonumental, de fachadas neutras e cinzas e praticamente despovoada”.[3] A ideia das coincidências fortuitas, cara aos surrealistas, vê-se representada numa fotografia de uma vitrine de camafeus que se associa ao encontro de Nadja com a Senhora Camée (Camafeu) ou fotografias de um café que apresenta o lugar de encontro de Breton com Nadja. São ainda problematizadas pela historiadora as posturas de outros autores que interpretam as fotografias em Nadja: como contribuição ao relato de Breton, na visão de Walter Benjamin; como banais, por Michel Beaujour; como substituição à descrição linguística, por Silviano Santiago; como decepcionantes e por mostrarem a banalidade, por Jean Lauxerois.
Outra publicação surrealista que também merece a atenção da pesquisadora é O Amor Louco, ilustrado com 20 fotografias, que se mostra na contramão das fotografias que caracterizaram Nadja, de “neutralidade e do anonimato”, e em cujas imagens há a “busca por elementos referenciais, mas quase sempre inquietantes e perturbadores”.[4] As imagens de Ray, Brassaï e Dora Maar, entre outras, são analisadas, capítulo a capítulo, em relação às narrativas do texto. Para completar a trilogia, aborda, ainda, Os Vasos Comunicantes, cujas imagens, segundo Fabris, mantêm determinados elos entre si, e é nesse sentido que a autora desenvolve sua análise.
Na sequência do capítulo, aborda as práticas fotográficas de Max Ernest, ao tratar das colagens e fotomontagens de imagens apropriadas e redimensionadas em contextos enigmáticos, com as quais o artista questiona o princípio de identidade, a ideia de criação decorrente do romantismo, o mito da originalidade e a primazia do conhecimento técnico, respondendo, dessa forma, à proposição de uma arte figurativa não-realista, esperada por Breton. Uma série de obras trabalhadas por meio de operações de montagem, desmontagem, ampliação e reprodução, é analisada, levando em conta a associação entre texto e os significados das iconografias fotográficas impressas, retiradas de imagens da indústria, da paleontologia e da anatomia.
Os desenhos-colagem de Joan Miró, realizados a partir de imagens de reproduções de cartões postais, mostram o interesse do artista pela cultura de massa e sua inconformidade com os meios tradicionais da criação.
Abordando os pontos de convergência e de fricção das obras de Man Ray com os postulados surrealistas, a autora trata, entre outras análises, da forma como o artista operacionalizava suas práticas fotográficas, utilizando procedimentos técnicos como as rayografias, a solarização e os cortes que produzem estranhamentos, em obras importantes, como na série Objetos de Afeição, no álbum Les Champs Délicieux, nos retratos femininos e masculinos e nas fotografias de moda. É por meio de manipulações na linguagem fotográfica que Ray elabora suas “estratégias antirrealistas, anticonvencionais de forma a modificar a identidade das coisas”.[5]
O segundo capítulo trata da chamada Nova Visão na produção fotográfica dos artistas László Moholy-Nagy e Aleksandr Ródtchenko e de como essa concepção se difundiu no Brasil. As novas modalidades de visualização da fotografia pela Nova Visão – tomadas em ângulos oblíquos, enquadramentos inusitados – estão na raiz das fotografias desses artistas. A autora inicia sua reflexão com a querela que envolve a invenção do fotograma quanto às atribuições de sua origem, ligada aos nomes de Christian Schad, Man Ray e Moholy-Nagy. Se Ray escolhe objetos capazes de criar “enigmas visuais” em suas rayografias de modo a transformar o caráter identitário real do objeto, Moholy-Nagy procura utilizar em seus fotogramas materiais que evidenciam a essência de seu próprio meio, que é a luz, constituindo as imagens por uma escala de valores tonais. Outro ponto abordado são as fotomontagens ou fotoesculturas de Moholy-Nagy, em que o artista explora os múltiplos pontos de fuga compostos a partir de várias fotografias por procedimentos de cópia, colagem e retoque em temas sobre a mulher e a política, não sem laivos de humor. Por meio de análises de diversas obras da prática fotográfica realizada com câmera pelo artista húngaro, Fabris explora as características presentes emnova visão, que se dissocia das formas tradicionais da pintura pelo emprego de outras possibilidades de expressão, como as distorções da lente da câmera, ângulos superiores e inferiores, enquadramentos em diagonal e escorço. Os pressupostos teóricos que discutem a proposta da nova visão apresentados no livro publicado por Moholy-Nagy, Malerei Fotografie Film (1927), são incorporados à reflexão da autora, bem como outros escritos do artista húngaro. Sua análise é ampliada ao confrontar a obra desse artista com aquela visão da nova objetividade encontrada nas fotografias de Albert Renger-Patzsch. Completando sua abordagem, também são considerados os jogos cromáticos nas fotografias coloridas de Moholy-Nagy. No caso das fotografias de Ródtchenko, embora tenha havido oscilações entre obras inovadoras e de caráter documental, Fabris alerta para os atritos que a estética da nova visão causou no contexto russo por contrariar os princípios de uma fotografia utilitária que pudesse atender a ideologias políticas.
O livro se encerra analisando como os postulados da nova visão se difundem no Brasil, nas fotografias realizadas por Mário de Andrade, em algumas fotografias publicadas em determinadas revistas, como S. Paulo (1935) e O Cruzeiro (a partir da reformulação em 1940), e nas fotografias de José Yalenti, Thomaz Farkas, German Lorca e Geraldo de Barros. O uso da contraluz e de texturas que afastam o caráter mimético do referente, enfatizando a planaridade dos assuntos, os jogos de linhas e as tomadas oblíquas, entre outros aspectos, se coadunam com princípios de novos modos de ver na qual a fotografia esteve empenhada para uma visão renovada do real. Um artista como Barros soube explorar, na série Fotoformas, as potencialidades de suas fotografias com intervenções manuais nos negativos, sobreposições de fotogramas e uso de transparências, entre outras formas de explorar novas modalidades de visão.
A pesquisa de Annateresa Fabris sobre relações entre a fotografia e as vanguardas históricas, além de contribuir como uma reflexão para ampliar as pesquisas sobre esse assunto, ainda pouco explorado, serve também como exemplo paradigmático de como se pode construir uma história da arte, não mais num sentido restritivo das abordagens autônomas entre os meios, mas como reflexões de interfaces entre a fotografia e a arte.
Notas
[1] Fabris, Annateresa, O desafio do Olhar, fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas I, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 7.
[2] Fabris, Annateresa, O desafio do Olhar, fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas II, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 27.
[3] Idem, p. 47.
[4] Idem, p. 63.
[5] Idem, p. 192.