L’occhio che immobilizza la realtà. O papel da fotografia em Baba Yaga (1973), de Corrado Farina
L’occhio che immobiliza la realtà. The role of photography in Baba Yaga (1973), by Corrado Farina
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> autores
Letícia Badan
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas (IFCH – Unicamp), onde desenvolve a pesquisa O imaginário visual do cinema de horror italiano, sob orientação do Prof. Dr. Jorge Coli (Processo FAPESP 2017/12289-6). Mestre em História da Arte pela mesma instituição, com a dissertação A cultura visual no cinema de Dario Argento. Colaboradora da Revista Rocinante. Suas pesquisas unem história do cinema e história da arte, se concentram em especial no vínculo entre cinema de horror e artes plásticas.
Recibido: 03 de marzo de 2022
Aceptado: 08 de junio de 2022
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> como citar este artículo
Letícia Badan; “L’occhio che immobilizza la realtà. O papel da fotografia em Baba Yaga (1973), de Corrado Farina”, en caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA), N° 20 | segundo semestre 2022.
> resumen
Este artigo apresenta uma leitura dos elementos fotográficos presentes no filme Baba Yaga (1973), de Corrado Farina. Adaptado de uma história dos fumetti Valentina, de Guido Crepax, o longa-metragem reelabora o discurso fílmico por meio de uma exploração intensa da linguagem fotográfica na composição de sua narrativa visual. A fotografia, profissão da protagonista milanesa Valentina, é também ponto de encontro das ações sobrenaturais e macabras da antagonista Baba Yaga. O aparelho fotográfico é posto como aquele que transita os espaços previamente estabelecidos entre o objeto passivo e o sujeito ativo, capaz de transmutar a experiência do real a partir do disparo. As imagens captadas pela caixa preta incidem na realidade através de sua capacidade de congelamento da cena, de imortalização e/ou morte do personagem-sujeito. Buscamos apresentar como o filme se utiliza de tais mecanismos para reforçar intenções próprias da efervescência social e política da Itália dos anos 70, bem como estabelecer comparações com demais obras cinematográficas nas quais a fotografia igualmente porta aspectos místicos, a partir da exploração do tema da arte como arma. Por meio da análise fílmica e do fumetto buscamos evidenciar como a obra revela uma relação direta com a própria história da fotografia.
Palabras clave: cinefumetto, Corrado Farina, Guido Crepax, cinema e fotografia, fotografia como arma
> abstract
This paper presents a reading of the photographic elements in the film Baba Yaga (1973), by Corrado Farina. Adapted from a story of the fumetti Valentina, by Guido Crepax, the featured film reworks the filmic discourse through an intense exploration of the photographic language in the composition of its visual narrative. Photography, the profession of Milanese protagonist Valentina, is also a meeting point for the supernatural and macabre actions of the antagonist Baba Yaga. The photographic apparatus is seen as one that transits the spaces preceded between the passive object and the active subject, capable of transmuting the real experience from the shot. The images captured by the black box affect reality through its ability to freeze the scene, immortalize and/or kill the subject-character. We seek to show how the film uses such mechanisms to reinforce intentions typical of the social and political effervescence of Italy in the 1970s, as well as to establish comparisons with other cinematographic works in which photography also has mystical aspects, based on the exploration of the topos art as a weapon. Through the analysis of the film and the fumetto, the work reveals a direct relation to the history of photography itself.
Key Words: cinefumetto, Corrado Farina, Guido Crepax, cinema and photography, photography as a weapon
L’occhio che immobilizza la realtà. O papel da fotografia em Baba Yaga (1973), de Corrado Farina
L’occhio che immobiliza la realtà. The role of photography in Baba Yaga (1973), by Corrado Farina
Cinema, fumetto e fotografia
As imagens podem ser armas. Na era da reprodutibilidade técnica significam concomitantemente agente e sintoma. É nos meandros das imagens que se descortinam as investigações de eventos sociais, é na potencialidade destas como signo de registro do passado em que se explicitam suas qualidades mais nevrálgicas. Nos dias atuais, onde deep fakes ocupam cada vez mais espaço na mídia, a busca por certa “verdade” na imagem parece fazer ressurgirem os debates acerca de seu caráter mimético. E se no passado a denominação de photography as a weapon fora usada nas fotomontagens políticas de John Heartfield para denunciar o nazifascismo, hoje a arma que deveria mirar a acusação do autoritarismo, é por ele utilizada para infligir justamente o espectador. No campo do cinema as imagens manifestam-se, por vezes, como sujeitos propriamente ditos, imagens assombradas, detentoras de vida, capazes de infligir o espectador.[1] As imagens de registro fotográfico e fílmico são alvo de investigações de filmes como Blow-Up (1966),[2] de Michelangelo Antonioni, onde a fotografia resguarda uma verdade oculta em seu interior, um crime. Em Snake Eyes (1998), Brian de Palma nos força a revisitar os registros da fatídica noite de boxe, igualmente revelando as armadilhas visuais que fogem ao olhar fulgaz.[3]
Em 1973, Corrado Farina igualmente se utilizou da potência das imagens para assinar seu filme Baba Yaga.[4] Uma coprodução ítalo-francesa da 14 Luglio Film e da Allouche, que adaptava parte das histórias do fumetto Valentina, de Guido Crepax. A imagem, na obra de Farina, retraça a marca da denúncia, o encontro do detalhe e do absoluto, mas é sobretudo pela via da imagem em que se descortina sua atmosfera macabra. Uma tela que levanta o véu da realidade. A obra une cinema, fumetto e fotografia.[5] E é, portanto, pela simbiose da linguagem cinematográfica àquelas do universo fotográfico e do desenho, que o filme interpela os manifestos sociais de seu tempo, numa denúncia onde o nazismo impera o universo dos pesadelos e cuja fotografia tem ações diretas nos contornos do real.
Cineasta turinês, autor de romances, contos, fumetti[6] e importante personalidade da crítica nos anos setenta e oitenta, Farina mantém em sua breve carreira cinematográfica um intenso diálogo com o mundo dos quadrinhos. Sua filmografia versa sobretudo pela linha documental e de curtas-metragens. Em 1971, dirige Hanno cambiato faccia, um horror/poliziesco estrelado por Adolfo Celi no papel de um magnata da indústria automobilística, que parece encarnar a representação vampiresca através da metáfora anticapitalista.[7] Suas obras mais conhecidas, além dessa, são Freud a fumetti (1970)[8] e Fumettophobia (1973),[9] ambas documentários de curta-metragem que retraçam a trajetória dos quadrinhos na Itália, nos quais fica evidente seu interesse pela obra de Guido Crepax.
Baba Yaga, seu segundo longa, entrega uma leitura da Itália dos anos setenta, mesclando cultura literária, crítica social, ideais políticos, moda e artes plásticas numa trama sobrenatural, na qual se esvaecem as barreiras entre o onírico e o real. No filme, a câmera funciona como porta de entrada para o labirinto sinuoso da fantasia. As imagens indiciam verdades ocultas em seu interior. São capazes de doar vida a objetos inanimados, e transmutam o terreno do real, por vezes imobilizando os personagens flagrados pelo olhar da câmera. O toque no gatilho e a captura do instante tornam-se disparos violentos, infligindo a paralisia e a morte das entidades representadas no interior da caixa preta. Buscamos, com esse artigo, analisar a abordagem do filme de Farina para com as imagens, e a maneira pela qual os diversos olhares presentes na obra sedimentam a metalinguagem da atividade do aparelho fotográfico e da câmera de cinema (Fig. 1).
Como dito, Farina idealiza o filme a partir de uma adaptação dos quadrinhos Valentina, de Guido Crepax. Este, assim como Farina, se porta da união da linguagem cinematográfica àquela dos fumetti. A disposição dos quadros orienta o olhar num jogo de ângulos e enquadramentos que retomam o sistema da montagem fílmica. Suas composições trazem à mente imagens anteriormente propostas por Serguei Eisenstein, Ingmar Bergman, James Whale, Erich von Stroheim entre outros.[10] Valentina, por sua vez, é baseada na figura de Louise Brooks. Criada em 1965, com um nascimento emblemático em 25 de dezembro de 1942 –data instituída por Crepax em homenagem à esposa– Valentina Rosselli aparece pela primeira vez como personagem secundária das histórias de Neutron. Fotógrafa de moda milanesa, ganha uma sobrevida nas páginas do autor, compreendendo uma boa parcela de sua produção literária. Giampiero Mughini sintetiza a importância da personagem à luz da Itália dos anos sessenta:
Nascida em 25 de dezembro de 1942, alta, 1.72m, Valentina Rosselli era uma coetânea da Woronov, de Edie Sedgwick, de Anita Pallenberg, e das outras amazonas sobre as quais falei no capítulo precedente. Exceto que ela não vivia em Nova York, e sim em Milão, onde era fotógrafa. Habitava no número 45 da rua De Amicis, endereço que era no período exatamente aquele de Guido Crepax. Habitava na realidade em seu sonho, em sua gaveta, em seu lápis, na sua fantasia erótica. O lápis e o sonho de um dos supremos artistas da cultura italiana moderna, de um que havia transformado o modo com o qual observamos e desejamos as imagens femininas. Poucos quanto ele criaram uma linguagem figurativa reconhecível a mil quilômetros de distância, uma marca de autor, uma sugestão sensual que não se abranda. Valentina era uma criatura de papel, embora muito real. Cheia dos humores daquela Milano da bere da metade dos anos sessenta, onde nascera “Linus”, um periódico dedicado aos autores dos fumetti de qualidade. Aos artistas que não eram inferiores aos romancistas ao recontar o mundo contemporâneo e os seus tipos humanos e as suas obsessões.[11]
Valentina era a representação da efervescência cultural da Milão dos anos sessenta. Uma fotógrafa que habitava a esfera dos sonhos, uma erupção humana das transformações da década –o feminismo, os debates acerca de gênero, os trânsitos culturais entre Europa e América, tão proibido nos anos do Duce. Seu métier se valida da arte da representação, da foto, e na esfera dos sonhos, espaço que domina como idioma de codificação das imagens inconscientes. Em 1971, Crepax inicia uma série de histórias que envolvem a personagem em tramas sobrenaturais, introduzindo a figura de Baba Yaga, uma bruxa.[12] Embora seu nome e condição retracem diretamente sua equivalente no folclore disseminado por Mikhail V. Lomonosov (1755), tem como inspiração a suíte Quadros de uma Exposição – Uma Lembrança de Viktor Hartmann (1874), mais especificamente o allegro Cabana de Baba-Yaga sobre Patas de Galinha, de Modest Mussorgsky.[13] Obra que o compositor russo realizara a partir de uma exposição de pinturas do amigo referenciado no título da peça.
Pertinente a relação proposta por Crepax com sua antagonista macabra e aquela de Mussorgsky, quando o universo das artes visuais se manifesta como inspiração para as composições de veia fantasiosa. De forma semelhante, a trama de Ali Baba Yaga encontra na manifestação do aparelho fotográfico e no mistério das imagens um ponto de colisão entre a realidade e o universo da fantasia. Ao visitar o estúdio de Valentina, Baba Yaga, tanto dos quadrinhos, quanto do filme, toca sedutoramente a câmera Rolleiflex da protagonista, iniciando um ciclo ininterrupto de eventos misteriosos. O aparelho ganha dimensões febris, impactando diretamente sobre a realidade fílmica e aqueles que encapsula congelados no interior de sua câmara escura.
O filme narra a história da dita Valentina Rosselli (Isabelle de Funés), que certa noite, caminhando sozinha pela obscura e desértica Galleria Vittorio Emmanuele II, resgata um cachorro de um possível atropelamento, e se depara com uma misteriosa mulher vestida de negro (Carroll Baker), cujo nome intitula o filme. Saída de seu Bentley R-Type 1952, a bruxa parece aludir a um tempo passado e vencido, em contraste com a efervescência avant-garde da Itália dos anos setenta. Seu longo vestido preto parece saído de uma revista de moda da belle époque; o véu fúnebre cobre a face enigmática, com suas feições parelhas àquelas das musas do divismo; o luxuoso e ultrapassado carro evoca seu passado de glória; a villa onde habita[14] e os excessos que circundam seu mundo transformam-se em signos de um tempo pretérito em decadência, corroído pelas novidades da década. Refletindo o país cujo modelo globalizado de vida já não suporta as moralidades obtusas daquela aristocracia outrora soberana, evidenciando “o contraste entre mundo moderno e mitos ancestrais”.[15]
Baba Yaga nutre uma relação obsessiva com a heroína, penetrando sorrateiramente seu cotidiano de trabalho, criticando suas relações afetivas com sua inclinação lésbica, e assombrando, principalmente, a esfera de seus sonhos. Ela entrega para Valentina uma boneca chamada Annette, personagem que nos desenhos de Crepax, encontra igualmente protagonismo e um volume exclusivo. No filme, contrariamente aos seres animados que se paralisam sob o olho da câmera, quando fotografada, a boneca ganha vida. Esse tema retraça o mito de Pigmalião, quando agraciado por Vênus, o escultor do Chipre é surpreendido com a amada estátua de marfim em forma humana. De maneira parelha, os eventos macabros e sobrenaturais que perpassam o entorno enigmático de Baba Yaga são capazes de infligir morte pela imagem, mas também de doar-lhe vida.
Valentina apenas se apercebe da questão quando ao revelar imagens de sua sessão fotográfica anterior, ela nota que Annette, presente nos fotogramas como uma boneca com vestimenta sadomasoquista, aparece agora transmutada em ser vivo. Com o auxílio de uma lupa, ela investiga com mais afinco a imagem, numa sequência que pode ser posta ao lado tanto de passagens similares em Ciao, Valentina! (1972), de Crepax, bem como em Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni, que através da ampliação do detalhe fotográfico revela igualmente um homicídio outrora velado. Em Baba Yaga, há uma transfiguração dupla, ocorrida preliminarmente através do suporte fotográfico, para depois auferir sua substância carnal (Fig. 2).
Os créditos iniciais apresentam o desenho de Crepax, associando os elementos característicos da trama do quadrinho aos respectivos intérpretes do filme. Como um todo, o longa se desenvolve a partir da metáfora do olhar, que encontra seus correspondentes: a câmera de cinema, o aparelho fotográfico, os personagens, e consequentemente, o olhar social. O espetáculo do cinema dissimula a realidade em um primeiro instante, e acredita-se presenciar uma batalha entre povos nativos americanos e soldados da confederação. O sonar de uma viatura da polícia tolhe a cena, evidenciando que, na realidade, trata-se de uma performance new age anti-imperialista, da qual, evidentemente, Valentina faz parte.
Essa confusão do olhar se manifesta igualmente na transformação da linguagem cinematográfica, que por vezes se empresta da fotomontagem para revelar o universo oculto dos sonhos e da fantasia. É na mimese da narrativa dos quadrinhos que Farina, através da decupagem, reconstrói o movimento de imagens em preto e branco correspondentes àquilo que vemos em cena. Por exemplo, durante a sequência de sexo entre Valentina e Arno (George Eastman), o impulso do desejo se perfaz a partir da leitura de outro importante fumetto de Crepax: Bianca. É no jogo entre a troca de olhares plenos de volúpia, enquadrados pela câmera, e através de fotomontagens em preto e branco de alta exposição, que Farina concebe sua sequência amorosa. Quase como se Valentina fosse tão absorta em sua própria essência de fotógrafa, que ao cerrar os olhos, as imagens projetadas sob as pálpebras viram justamente aquelas que realiza quando observa os demais através de sua Rolleiflex.
Além desses momentos, a fotomontagem é também empregada numa via diversa, mas que opera igualmente certa apreensão de fantasmagoria, do fantástico. Em certo passagem, tentando se desvencilhar das manipulações de Baba Yaga, Valentina acompanha Arno em uma projeção de filmes do ciclo do expressionismo alemão. Durante a sessão de O Golem (1920) de Paul Wegener e Carl Boese,[16] a protagonista se vê tomada de assombro por acreditar que uma das pessoas ocultada na escuridão da sala de cinema é a bruxa que lhe persegue. A partir desse momento realidade e onirismo se confundem novamente e as imagens projetadas na tela passam a englobar aquelas fotografias em preto e branco de seu pesadelo. A estética do chiaroscuro expressionista encontra similitude nas imagens mentais de Valentina, e confundem diante da tela as figuras da estátua de argila, detentora de vida, bem como aquelas de Baba Yaga, de si mesma, da câmera e de Annette. Como se os eventos macabros do filme mimetizassem exatamente aqueles dispostos em tela: a estátua animada encontra paralelo na figura da boneca pelas graças da magia (Fig. 3).
Esse topos metalinguístico é inquietação persistente na filmografia de Lamberto Bava, a partir do qual dois paralelos merecem ser pontuados, primeiramente, em Dèmoni (1985).[17] O espaço do cinema e as cenas desenroladas pelo projetor engendram-se como verdadeira ameaça aos espectadores. Tudo que é visto no filme (intradiegético) se exterioriza em tautocronia na sala de cinema. A personagem contaminada pelas garras do demônio de Bava, rasga o tecido da projeção –eco distante de Lucio Fontana–, terminando no palco da sala sua metamorfose derradeira. Posteriormente, em Dèmoni 2 (1986),[18] Bava igualmente distorce as margens entre ficção e realidade por meio da corporificação do demônio através do médium do televisor. Há ainda outros paralelos que retraçam certa ideia de fantasmagoria, como o episódio Cigarette Burns, que John Carpenter realiza para a série Masters of Horror (2005), onde as vísceras dos espectadores do filme maldito, intitulado La fin absolute du monde, tomam o lugar da película de celuloide no projetor (Fig. 4).
A linguagem que Farina introduz em seu filme reflete um filone específico do cinema italiano, que no decorrer dos anos sessenta e setenta, marcou um boom na cinematografia nostrana: o cinefumetto. Filmes como Kriminal (1966), de Umberto Lenzi, Satanik (1968), de Piero Vivarelli, Danger: Diabolik (1968), de Mario Bava e Isabella: Duchessa del Diavolo (1969), de Sergio Corbucci eclodem na península italiana em uma era cujo país se via onusto de um frenesi social e político. O fumetto, embora presente na cinematografia desde 1941, se desenvolve especialmente ao longo da década de sessenta, formando um prolífico campo no imaginário cultural italiano.
Os fumetti do período e igualmente os filmes nos quais são adaptados trabalham notadamente com erotismo e violência, como é o caso de Isabella, um western all’italiana. Em Satanik, Kriminal e Danger: Diabolik, os protagonistas masculinos e mascarados afirmam-se como verdadeiros denunciadores do imperialismo corruptivo que impera nos estratagemas segredistas da burguesia, tomada por sua inclinação imoral e antiética. Entre tais lançamentos, Corrado Farina endereça seu Baba Yaga (1973).
Numa abordagem particular, mas inspirada no que Tinto Brass fizera anos antes, também a partir de criações de Crepax,[19] o filme salienta debates acerca da situação política e social da Itália dos anos setenta –em particular Milão, onde a trama se desenvolve. Embora elenque os constituintes literários e ideológicos da geração de 68, cuja racionalidade do discurso se vê marcada quase como signos de manifesto na totalidade da cenografia e do argumento –os livros de Herzog e Kafka; o cinema de Godard; o onipresente exemplar do Manifesto Comunista, de Marx; os catálogos de Marino Marini –Baba Yaga igualmente se nutre de elementos do universo gótico, como as ville abandonadas e as imbricações entre as aristocracias pertencentes a uma ideia de passado vencido e a nova geração, que traz na voz a promessa de um futuro diverso.
A cinematografia italiana dos anos setenta muito se interessou pelos embates entre passado e presente, especialmente o horror gótico. Filmes como Un posto ideale per uccidere (1971, Umberto Lenzi), Il prato macchiato di rosso (1973, Riccardo Ghione) Le Regine (1970, Tonino Cervi) e Estratto dagli archivi segreti della polizia di una capitale europea (1972, Riccardo Freda) são alguns exemplos disso. Neles, como no filme de Farina, o abismo que separa a burguesia dos novos herdeiros do país se salienta por uma constante tentativa de corrupção destes com os vícios da geração anterior.[20] De forma similar, Baba Yaga tenta obstinadamente corromper os ideais de Valentina. Seduzindo-a, colocando-a contra os homens, inserindo-a num universo de pesadelos onde a própria personagem é posta como soldada nazista. A obra se pavimenta no embate de estratosferas diversas, nas quais se irrompem as realidades da protagonista e de sua antagonista. O espaço claro e livre de ornamentos do apartamento de Valentina, com azulejos em op art decorando o banheiro, os cartazes de Mandrake, do Patolino, contrastam com o covil de Baba Yaga. Este, com sua arquitetura liberty, os animais empalhados, num espaço de clausura onde se veem as marcas do tempo, apógrafo tardio da Mallanote de Gaetano Trevi.[21] A bruxa em Farina sintetiza a ideia do vampiro moderno sobre a qual Riccardo Freda escrevera em sua autobiografia:
Ser vampiro significa viver ao lado de alguém extremamente mais jovem que nós e “sugar”, sem que ele perceba, o que há de melhor: inteligência, espírito vital e acima de tudo frescor de ideias, sentimentos, reações. (…) Mas acreditem em mim: o mundo é povoado de vampiros que, mesmo quando não os perceba, sugam-lhe o melhor de sua essência (Fig. 5).[22]
Fotografia, arte homicida
A ideia de conceber um filme de linguagem intercambiada encontra, como dito, um ponto de contato simbólico a partir do uso da fotografia. No campo do cinema de gênero, em especial no giallo e no horror, a arte manifesta-se em seus aspectos mais macabros, evidenciando qualidades sui generis que traduzem diretamente as inquietações correspondentes dos filoni cinematográficos em questão. As potencialidades homicidas e mortais da arte foram topoi de exploração massiva na filmografia de cineastas como Mario Bava, Antonio Margheriti, Dario Argento, Lucio Fulci e outros. As obras em Argento, por exemplo, manifestam-se como porta de entrada para labirintos misteriosos, como é o caso de Suspiria (1977).[23] Resguardam verdades ocultas em seu interior –como visto em L’uccello dalle piume di cristallo (1970)[24] e Profondo Rosso (1975).[25] Mas, sobretudo, assumem um caráter homicida, verdadeiras ameaças de veia febril, que perturbam a psiquê de seus espectadores –tal qual La Sindrome di Stendhal (1996).[26] Ou no âmbito concreto, manifestando-se como armas, que como os antagonistas de suas tramas, representam os autores dos assassinatos –L’uccello dalle piume di cristallo, Tenebre (1987),[27] Suspiria.[28] Nos demais diretores, a arte igualmente porta aspectos sobrenaturais. Mostra-se por vezes viva, possuidora de certa fantasmagoria, reincidindo o debate já caro aos historiadores da arte e filósofos dos possíveis limites entre objeto passivo e sujeito ativo.
Essa noção, embora muito presente no universo cinematográfico, ou mesmo na literatura gótica, encontra poucos exemplares no que tange a fotografia. Podemos fazer referência ao próprio Argento, que nos momentos iniciais de La Terza Madre (2007) projeta sobre a lente da câmera uma imagem quase instantânea de uma visão demoníaca.[29] Ou até mesmo, na presença sintomática que o aparelho encontra em Images (1972), de Robert Altman, flagrado reiteradamente nos diversos espaços da residência de Cathryn (Susannah York).[30] Baba Yaga, em contrapartida, reflete a arte fotográfica como elemento primordialmente fantástico, empregando-a num caráter análogo ao das demais artes, no qual tanto o registro, quanto o aparelho perpetuam-se como agentes de qualidades paralisantes e mortais. Isso se nota em diversas passagens do filme e do fumetto, mas principalmente na sequência já mencionada, da primeira visita de Baba Yaga ao estúdio de Valentina. Sob o toque sedutor no aparelho recita –quase num tom hipnótico– as palavras: “l’occhio che immobilizza la realtà”. Dizerem estes que sintetizam o fundamento do aparelho fotográfico e sua capacidade de flagrar o instante em imobilidade (Fig. 6).
No espectro das potencialidades atuantes das imagens, fica claro como Crepax e Farina dissimulam a esfera do real, i.e., da realidade diegética, a partir do toque da bruxa no aparelho. Desde então, tudo o que Valentina captura no interior de sua Rolleiflex “dobra” a realidade. Suas modelos sofrem síncopes ocasionadas pelo simples gesto do pressionar o botão da câmera, e num momento mais adiante, até a Arriflex II de seu companheiro Arno é impactada pelo gesto no gatilho: o filme se macula e a imagem fílmica se perde. Isso demonstra como a fotografia, rememorando os debates da era de seu nascimento, não apenas reproduz a realidade, mas a modifica. Poderíamos nos emprestar das categorizações de Flusser, que identifica no manipulador do aparelho seu atributo de “funcionário”.[31] Pensando aqui, como a máquina é o verdadeiro motor na criação da imagem, independente de quem a opera.
Philippe Dubois, traçando um panorama histórico dos debates sobre a fotografia, comenta acerca do discurso de mimese, que no século XIX era defendida pelos entusiastas do realismo fotográfico, sob cuja perspectiva “a fotografia seria o resultado objetivo da neutralidade de um aparelho”,[32] enquanto o discurso predominante no século XX “insiste mais na ideia da transformação do real pela foto”.[33] Esses pontos parecem encontrar eco nas ações transformadoras da máquina assombrada de Valentina. Antes de ser vista em seu caráter documental, através do qual a fotografia é encarada como “espelho do mundo”, como argumenta Dubois, ela é “operação de codificação das aparências”.[34]
Contudo, a fotografia encontra na via da impressão o congelamento do tempo e a imortalidade da imagem. Ela encerra no espaço físico do papel ou da prancha metálica a manifestação física e visível daquilo que outrora fora mero conceito encapsulado no interior mágico da caixa preta. Encontra na imediatez do instante e da manipulação do aparato mecânico, uma forma de dotar ao visível as qualidades que beiram a esfera do olhar inconsciente. Se no surgimento do daguerreótipo a fotografia não se mantinha sobre a alcunha da captura do instante, tornando ausente o que estava presente no olhar, no decorrer dos séculos, a evolução técnica da câmera possibilitou o instante tornar-se norma, trazendo consigo a agilidade do gatilho em suas qualidades quase golpeantes. Enquanto se fazia necessário imobilizar a realidade para que ela fosse eternizada na impressão, o instantâneo permitiu não dobrar o movimento às necessidades do aparelho.
Isso se faz evidente não apenas na arte do retrato, que empregaria no decorrer da segunda metade do século XIX uma tendência crítica à substituição do próprio gênero na pintura –pontuada desde o Salão de 1859, por Baudelaire, por exemplo–, como nos demais gêneros. Na paisagem, na natureza morta, a fotografia mantém como essência a mesma das demais artes visuais: imortalizar certa perenidade do olhar e do instante. Olhar esse, que tomando de empréstimo as palavras de Baitello Junior, em seu A era da iconofagia, “passa a significar apropriar-se”.[35] Na era da iconofagia, quando as imagens povoam o cotidiano e o imaginário de forma desordenada, apropriar-se significa não ser devorado por elas. O autor discorrerá, mais adiante em seu ensaio, acerca do caráter de devoração das imagens, que segundo Baitello nasce do medo. Peguemos de empréstimo suas palavras novamente, para esclarecer a o aspecto de congelamento da fotografia no filme:
Pelo medo inflamos os signos, símbolos e as próprias imagens, para que nos protejam como escudos. E passamos a viver dentro da armadura dos signos e símbolos, as imagens de corpos. Mas é impossível ver o mundo por detrás dos escudos. Passamos a ver a face interna dos escudos que nos recordam o medo do mundo e o mundo do medo. Assim, também faz parte da natureza da imagem seu vínculo com a projeção de sombra (Cf. Belting, 2000). Da sombra nasce a imagem, como da morte nasce o retrato da pessoa morta, a ‘imago’. E o medo ancestral está entranhado nos meandros da imagem. Não é à toa que as imagens nos capturam, nos imobilizam, nos petrificam, como górgonas de olhar terrível. A primeira das três górgonas, Medusa, inclusive simboliza, na mitologia grega tardia, segundo Junito Brandão, ‘a imagem deformada, que petrifica pelo horror’.[36]
Essa característica meduseia do olhar terrível parece encontrar uma via de encontro em Baba Yaga. Desde o advento da impressão fotográfica, as imagens feitas pela câmera permanecem como um constituinte-chave da metáfora da transposição do movimento em estaticidade. Uma via de aproximação oposta àquela que agraciaria Vênus a Pigmalião e sua Galateia. É na imobilidade que ela manifesta sua habilidade de transmutação em outro, de aprisionamento do fugaz em perene, e da imortalização do que em vida se resume à finitude. Os primeiros daguerreótipos compreendiam essa habilidade de metamorfose da visão, encerrada na impressão fotográfica. O movimento dos transeuntes parisienses da Boulevard du Temple (1838), de Daguerre, não se manifesta no testemunho visual da impressão gráfica. Incapazes de se serem capturados pelo longo tempo de exposição do aparelho à luz, desaparecem por completo da composição, transformando a movimentada avenida parisiense em um desértico espaço urbano. Philippe-Alain Michaud comenta sobre a transformação do animado em fixo dos primeiros daguerreótipos, em seu Aby Warburg e a imagem em movimento:
As imagens produzidas nas câmaras escuras devolvem o movimento e se estendem, de maneira ilimitada, à totalidade do visível, mas, mesmo assim, continuam sumamente fugazes: sem consistência, continuam a depender da manifestação de seu modelo; quando ele desaparece, irremediavelmente também desaparece o reflexo que reconstituíra artificialmente sua aparência. Ao contrário, a imagem presa na chapa fotográfica persiste após o desaparecimento do objeto. Mas, por isso mesmo, fica condenada à fixidez.[37]
Essa condenação à fixidez da qual escreve o autor resume a transformação da fotografia no decorrer do século XIX, especialmente com o surgimento da cronofotografia. Se o olhar da câmera era incapaz de reproduzir o instante dos passos dos transeuntes do Boulevard du Temple, com os experimentos de Marey e Janssen o que se estabelece é justamente seu oposto. A câmera torna-se o instrumento de apreensão do imperceptível ao olhar –o movimento invisível, o passo do cavalo, a aerodinâmica das asas dos pássaros– possibilitando novos caminhos para os estudos científicos da natureza, bem como para o campo das artes plásticas. De forma similar o olhar da câmera paralisa, como a Górgona, aqueles que se flagram no aparelho (Fig. 7).
Mais insistentemente, essa paralisia se potencializa ao longo do filme. Se em princípio o que ocorre é a inércia do sujeito retratado, no desenrolar da trama as imagens que Valentina captura acabam por engendrar factualmente ameaças aos personagens. A influência da câmera sobre o visível se confirma quando a personagem é informada da morte de uma das modelos que outrora fotografara. Isso vira axioma na sequência de manifestação contra a doutrinação católica. Valentina caminha pelas ruas movimentadas de Milão e se avizinha de um grupo de manifestantes que protestam contra a hegemonia corruptiva católica. Um deles, que porta uma coroa de espinhos, aludindo à figura de Cristo, segura um cartaz que exibe os dizeres “não vivo mais aqui”. O manifestante, ao ser flagrado pela lente, sucumbe diante de Valentina.
A sequência traz à baila uma crítica direta aos eventos dos anni di piombo, pelos quais a Itália passava desde o final dos anos 60. A década de 70 com o terrorismo rosso e nero, os sequestros de Aldo Moro e outros, os bombardeamentos nas estações de Trento, e a manifestação na Università Cattolica refletem-se no filme ao passo que Valentina transita pelos espaços urbanos da turbulenta Milão, palco central dos escândalos da época. Em seguida, os horrores presenciados e o assombro de se ver como propulsora de tal calamidade, Valentina sonha que é uma lutadora de boxe, preparando-se para lutar com o próprio manifestante. Em um canto do ringue ele é instruído por uma militar nazista, enquanto Valentina, no ângulo oposto, recebe o auxílio da vilã macabra. O nocaute certeiro e a morte do personagem representam suas ações como aquela, que outrora manifestante da performance teatral, contraventora das normas legislativas, metamorfoseia-se em corruptora de seus ideais revolucionários (Fig. 8).
A partir de uma leitura, principalmente, dos estudos de Belting e Kamper, Norval Baitello Junior, em seu anteriormente mencionado A era da iconofagia, explica acerca da natureza das imagens. Para o autor,
As imagens são, por natureza, fóbicas. Evocam e atualizam o medo primordial da morte, uma vez que elas originariamente foram feitas para vencer a morte. O medo da morte é o que nos conduz a emprestar a vida e a longa vida aos símbolos. Pois é em sua longa vida que prorrogamos e prolongamos a nossa própria vida, simbolicamente. As imagens não apenas evocam arqueologicamente as representações da finitude, como também trazem à tona as figuras associadas ao obscuro universo da sombra, resgatando suas personagens e sua arqueologia.[38]
O equivalente pode ser posto em relação à natureza da fotografia. Ela permeia esse caminho sinuoso entre a vida e a morte, entre o passado e o presente, se torna, por vezes, elemento de testemunho histórico, de denúncia social e bélica, aprisiona na imobilidade do registro rastros da ordem do não visto. Podemos compreender, portanto, que a fotografia, como as demais formas de manifestação das imagens, surge essencialmente dessa necessidade de prorrogação e prolongação da própria vida, da qual Baitello faz referência. Uma forma de vencer a morte.
Paralelos possíveis
Como aquelas que “trazem à tona as figuras associadas ao obscuro universo da sombra”, poderíamos conjecturar que talvez nessa relação com a obscuridade, com o que se esconde no negrume interior do aparelho, ela se avizinha à ideia de morte. Se o filme reforça a noção de fatalidade pela fotografia, seria possível traçar outros paralelos com advento fotográfico na segunda década do século XIX. Enquanto imortaliza a vida, ela engloba nossa distinta relação com a morte. Seja através das representações dos espaços desérticos, como indiciado pelas palavras de Michaud (os quais poderíamos pressupor que prenunciam, pelo esvaziamento do espaço, certa atmosfera de morte), seja no retrato póstumo, ou ainda no gênero da paisagem e da natureza morta, a ideia de finitude da vida de faz preponderante.
Pensando mais uma vez, em paralelo às origens da fotografia. Podemos aproximar o caráter bélico que o aparelho de Valentina possui às invenções dos franceses Pierre Jules César Janssen e Jules-Étienne Marey, que respectivamente em 1874 e 1882, concebem o revolver photographique e o fusil photographique. O primeiro interessado em sua aplicação na astronomia, o outro na desconstrução da mecânica do movimento animal. A Rolleiflex de Valentina parece alçar-se sobre pressupostos similares, embora fecundados de forma oposta, àqueles que os cientistas outrora problematizaram com suas criações. O fuzil fotográfico e o revolver de Janssen partem do princípio do funcionamento mecânico e da aparência do armamento para então serem apropriados como mecanismos de captação das imagens, maculando a função originária desses em sua capacidade aniquiladora e violenta. Por outro lado, a câmera de Valentina se transforma em armamento, embora isso não compreendesse seu papel primordial. Ela começa como câmera para, enfim, tornar-se arma (Fig. 9).
Para retomar as inquietações de Baitello sobre o aspecto fúnebre das imagens, talvez valha que recuperemos a obra já mencionada de Dubois. Na introdução de O ato fotográfico, o autor inicia seu texto com uma descrição de Authorization (1969), de Michael Snow. Trata-se de uma instalação/performance em que o fotografo realiza uma série de autorretratos com polaroide sobrepostas num espelho. Como Baitello indicara, igualmente aqui a imagem apresenta um caráter de devoração. A cada golpe no gatilho, uma imagem revelada é anexada organizadamente sobre a superfície, no centro da composição. Numa mise-em-abyme a composição se completa com um novo retrato de Snow, registrando na prancha os demais retratos sobrepostos no espelho, mas ocultando, no entanto, seu reflexo. Dubois comenta:
Da primeira à quinta foto, assistimos ao recobrimento progressivo de sua imagem no espelho pelas fotografias que captaram essa mesma imagem. Eis o sujeito, esse sujeito presente em si mesmo no instante efêmero e fugaz do reflexo, ei-lo aos poucos enterrado sob sua própria reprodução, devorado, apagado um pouco mais a cada mirada, a cada disparo da câmera, pela representação congelada de instantes sempre superados. […] no final, na quinta imagem, após quatro camadas de flou, a primeira imagem e todas as que haviam seguido tornaram-se praticamente não-identificáveis. De forma que finalmente, ao invés de ter multiplicada infinitamente a imagem completa de seu rosto, no lugar de sua efígie, não há nada a ver além de uma poeira de partículas argênteas. Nem mesmo uma máscara mortuária. A múmia foi reduzida a cinzas. Dissolução total do sujeito pelo e no ato fotográfico. Imagem-ato (Fig. 10).[39]
Se nos “armamentos” fotográficos de Janssen e Marey é o disparo e a alusão bélica da natureza do aparelho que retraçam essa violência, na obra de Snow isso se reforça no apagamento do sujeito, transmutado em registro. No campo da fotografia contemporânea, alguns artistas salientam essa imposição violenta do disparo fotográfico e o impacto na imagem revelada. Entre outubro e novembro de 2010, a exposição Shoot! La photographie existentielle sediada nos Les rencontres de la photographie, em Arles, explorava justamente tal inquietação. Fotografias diversas em que os representados –muitos deles famosos, como Sartre, Simone de Beauvoir– eram vistos empunhando pistolas e espingardas. Os Tirs de Niki de Saint-Phalle igualmente figuraram nas paredes da mostra, mas é sobretudo na produção de três outros artistas ali expostos em que a violência era vista não pela iconografia, propriamente dita, mas como ação propulsora da mecânica fotográfica.
Jean-François Lecourt, com sua La balle crée l’image, de 1982, transformou a metáfora do golpe de luz em golpe de bala. Sua obra, que faz parte de uma série mais ampla, é realizada em etapas, e concebe uma arte que é ao mesmo tempo performance e registro fotográfico. Primeiramente, tem-se a construção de uma câmara escura hermética. O artista se posiciona diante do objeto e com um tiro cria um pinhole pelo qual a luz penetrará, dando origem à formação da imagem ulterior, e imprimindo na prancha seu autorretrato. Como as obras de Valentina, a fotografia só existe como manifestação da violência para com o objeto. E como ela, o que temos após o registro é simultaneamente evidência de macula do retrato e do retratado. Além dele, Oscar Bony, artista argentino, realiza em 1998, uma série intitulada El triunfo de la muerte, na qual aciona, com o auxílio de um controle, autorretratos e posteriormente incide furos de balas sobre as composições. As poses anunciam o ato violento do disparo, cujo fotógrafo salta como se atingido pela munição fotográfica (Fig. 11 y 12).
Poderíamos ainda mencionar outros artistas que evocam a violência na imagem, como o caso Mr. Pippin com seu Point Blank, de 2010, ou ainda, e de forma mais sintomática, a fotografia de JR, 28 Millimeters, parte da série Portrait d’une génération (2004), na qual realiza uma série de retratos da juventude do Les Bosquets, em Montfermeil. Ladj Ly, que figura no centro da obra empunhando uma câmera, alude à violência do gesto, como denuncia igualmente certo prejulgamento do olhar do espectador. A obra, não deixa de trazer à mente uma denúncia latente à violência policial e ao racismo. Algo que se reitera no filme na sequência do comercial do alvejante “que elimina qualquer traço de preto em segundos”. Na obra de JR, por sua vez, esse jogo aparece de forma irônica no próprio título da obra, que faz alusão concomitantemente ao calibre da munição e ao formato do filme de celuloide (Fig. 13).
Fica evidente, portanto, como o assombro do aparelho fotográfico induz em Baba Yaga certa potência macabra da fotografia, que numa abordagem metalinguística retraça a imagem de cinema e a própria arte fotográfica. Retomando a obra de Lecourt, nota-se como a ciência e mecânica da captura fotográfica, que operam na esfera da obscuridade, do interior negro do aparelho, transformam-se quase em metáforas da própria fotografia em Baba Yaga. No mistério da caixa preta, os enigmas da imagem se eclodem por vias sinuosas, semelhantes às charadas manipulatórias da bruxa sobre Valentina. É no preto em que se fundamentam as imediações do olhar pela arte do cinema e da fotografia. De um lado, na apreensão paralisada do instante absoluto, de outro, na justaposição visual em prol da ilusão cinética. A base de ação que estrutura aquilo que Vilém Flusser classificara como imagens técnicas[40]. É na obscuridade da caixa preta em que se formam as imagens posteriormente impressas no filme fotográfico, e é no interior igualmente negro da câmera cinematográfica onde o cinema encontra sua via de projeção luminosa. O branco, por sua vez, alicerce sumário dos registros em quadrinhos, por onde se fazem visíveis as criações da imagem. É através da luz que se projetam as imagens no cinema, e pela exposição a essa que o filme fotográfico se impregna na forma de combustão. No apêndice de seu romance Storia di sesso a fumetti, Corrado Farina endereça a importância da tela branca, tanto para o universo do cinema, quanto para o dos quadrinhos.
Branca é a tela cinematográfica: um mar, por vezes um oceano, de linho cândido (ou de algum outro tecido ou de qualquer acidente de material perlinato e sintético); do mesmo branco é também a prancha (papel de carta, cartolina, cartão) que o autor de histórias em quadrinhos se põe diante no início de seu trabalho.
Mas o branco não é por acaso uma cor qualquer: é a soma de todas as cores. E nem mesmo a tela e a prancha são superfícies quaisquer: são uma teia de tecido ou de papel dentro dos quais está a porta de ingresso do País da Fantasia, o espelho através do qual passou Alice em seu tempo e no qual o homem observa o seu Duplo. Basta que o projetor inicie cortando a escuridão com um golpe de luz, ou que o desenhista libere as amarras de seu lápis deixando livre de correr descontrolado na folha, porque o branco se enche de forma e de cor e ganham vida todos os personagens, as histórias, as fantasias que têm povoado o imaginário dos seres humanos desde que estes aprenderam a caminhar com apenas duas pernas, ao invés de quatro, rabiscando as paredes das cavernas com sílex talhado.[41]
De certa forma, quando Valentina toca o aparelho, ela atravessa e espelho de Alice mencionado por Farina, as imagens de seus sonhos, transmutadas no preto e no branco do registro fotográfico, funcionam como a porta de ingresso para o dito país da Fantasia. Há algo de particularmente mágico no que tange a esfera das imagens em movimento, e como Valentina que atravessa o buraco da residência de Baba Yaga, sendo ela própria uma espécie de Alice em constante metamorfose, igualmente as imagens que gera transmutam em fantasia a sua realidade (Fig. 14).
Notas
[1] Essa temática foi amplamente explorada no cinema de horror, por Dirceu Carlos Marins, em As imagens que nos possuem: variações sobre a possessão nos filmes de horror sobrenatural. Universidade Estadual de Campinas, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/43119009/AS_IMAGENS_QUE_NOS_POSSUEM_VARIA%C3%87%C3%95ES_SOBRE_A_POSSESS%C3%83O_NOS_FILMES_DE_HORROR_SOBRENATURAL_DIRCEU_MARINS
[2] Blow-Up (Blow-Up – Depois daquele beijo). Michelangelo Antonioni. ReinoUnido/Itália/EUA: Carlo-Ponti Production, MGM, Bridge Films, 1966.
[3] Snake Eyes (Olhos de Serpente). Brian de Palma. EUA/Canadá: Paramount Pictures, DeBart, Touchstone Pictures, 1998.
[4] Baba Yaga. Corrado Farina. Itália/França: 14 Luglio Film; Allouche, 1973.
[5] Na Itália, os quadrinhos recebem o nome de fumetto, termo que faz referência aos balões e vinhetas presentes nos quadrinhos para exprimir as descrições de cenas, falas ou pensamentos dos personagens. No país, seu nascimento se dá pari passu ao do cinema. Embora o primeiro tenha adentrado o país simultaneamente à França, com invenção do Kinetografo, de Filoteo Alberini (1893) –figura esta que conceberia na Itália da primeira década do século XX, em conjunto a Dante Santoni, o primeiro teatro di posa na via Appia Nuova, em Roma– os primeiros filmes de ficção italiano endereçados a nível internacional surgem em 1905. Os primeiros, Il cappello nella minestra, de Arturio Ambrosio (produção Ambrosio, de Turim), Un colloquio disturbato, de Filoteo Alberini (produção da Cinematografo Moderno, de Roma) e Disgraziate aventure dela signora Marietta di Belluno, de Almerico Roalto (produção da Fratelli Roalto, de Veneza). Três anos mais tarde, surgiriam nas páginas do Corriere del Piccoli –publicação idealizada por Silvio Spaventa Filippi– os primeiros fumetti, nacionais e internacionais, veiculados na imprensa italiana. Cf. Luigi Cozzi, Il cinema dimenticato. I film fantastici e horror italiani dal 1895 al 1960, Roma, Profondo Rosso, 2014. p. 17; Aldo Bernandini, Bianco & Nero. Il cinema muto italiano. I film dei primi anni, 1905-1909, Roma, C.S.C.. Turim, Nuova ERI, 1996. pp. 5-17; Carlo Scaringi, “Cinema e fumetto cento anni insieme”, em Fumetti di Cinema, Roma, Bariletti Editori, 1996. p. 7.
[6] Dentre outros, Farina é responsável pela série L’artiglio del demonio, do fumetto Diabolik. Obra na qual Mario Bava se baseou para a realização de Danger: Diabolik (1968). Cf. Corrado Farina, Entrevista de Luca Rea, janeiro de 2001. Apud, Tim Lucas, Mario Bava. All the Colors of the Dark, Cincinnati, VideoWatchdog, 2007. p. 724.
[7] Hanno cambiato faccia. Corrado Farina. Itália: Film 70, 1971.
[8] Freud a Fumetti. Corrado Farina. Itália: Donata Fachini, 1970.
[9] Fumettophobia. Corrado Farina. Itália, 1973.
[10] Essa relação com as imagens do cinema e especificamente com os cineastas citados foi identificada pelo próprio Corrado Farina em seu curta-documentário Freud a fumetti (1970).
[11] Giampiero Mughini, “La frangetta che sconvolge l’Italia” em Sex Revolution: Muse, eroi, tragedie di un’avventura che ha cambiato il mondo. Milão, Mindadori, 2007. pp. 71-72. Tradução da autora.
[12] Fazem parte da trama os fumetti Baba Yaga (1971), Bluebeard (1971), Il ritorno di Baba Yaga: Chi ha paura della strega? (1971), lançados inicialmente em Ali Baba Yaga, e Annette (1972).
[13] Barbara Uhlig. “Introduction” em Guido Crepax. The complete Crepax (vol. 3). Evil Spells, Seattle, Fantagraphics Books, 2017. p. 11.
[14] Para a residência de Baba Yaga, Farina se utiliza de uma locação específica, a Villa Arduino, em Turim, cidade natal do diretor. Não obstante reflita um espaço díspare àquele da urbanizada e moderna Milão, Turim é uma cidade conhecida justamente por lendas satânicas e de bruxaria. Completa no mapa, em conjunto com São Francisco e Londres o “triângulo da magia negra”.
[15] Corrado Farina, “Between movies and comics. An auteur memories of Guido Crepax’s Baba Yaga”, em Guido Crepax, op. cit., p. 423.
[16] Der Golem (O Golem). Paul Wegener, Carl Boese. Alemanha: Projektions-AG Union (PAGU), 1920.
[17] Dèmoni (Demons – Filhos das Trevas). Lamberto Bava. Itália: DAC Film, 1985.
[18] Dèmoni 2 (Demons 2 – Eles voltaram). Lamberto Bava. Itália: DAC Film, 1986.
[19] Refiro-me aos filmes Col cuore sul gola (1966) e Nero su Bianco (1969), ambos de Tinto Brass, cujos storyboards haviam sido encomendados especificamente a Guido Crepax pelo diretor.
[20] Esse tópico foi mais extensamente elaborado em uma comunicação de nossa autoria, intitulada “Ai confini del mondo. A arte e as ruínas do tempo no cinema de horror gótico italiano” apresentada no XI Congresso Internacional CAIA (2021), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BT8w6L9wdQ8
[21] Faço referência aqui à villa na qual reside o protagonista do romance Gomòria (1921), de Carlo Hakim de’Medici.
[22] Riccardo Freda, Divoratori di celluloide, Milão, Edizioni Il Formichiere, 1981, pp.88-89.
[23] Suspiria. Dario Argento. Itália: Seda Spettacoli, 1977.
[24] L’uccello dalle piume di cristallo (O Pássaro das Plumas de Cristal). Dario Argento, Itália/Alemanha Oriental: Central Cinema Company Film (CCC), Glazier, Seda Spettacoli, 1970.
[25] Profondo rosso (Prelúdio para Matar). Dario Argento. Itália: Rizzoli Film, Seda Spettacoli, 1975.
[26] La sindrome di Stendhal (Síndrome Mortal/A síndrome de Stendhal). Dario Argento. Itália: Medusa Film, 1996.
[27] Tenebre. Dario Argento. Itália: Sigma Cinematografica Roma, 1982.
[28] Este tema foi objeto de investigações passadas, e permanece como um dos elementos preponderantes de nossa atual pesquisa. Acerca da potencialidade macabra da obra de arte no cinema de Dario Argento, ver: Letícia B. P. K. de Campos, A cultura visual no cinema de Dario Argento, Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/983985
[29] La terza madre (O Retorno da Maldição – A Mãe das Lágrimas). Dario Argento. Itália/EUA: Medusa Film, Opera Film Produzione, 2007.
[30] Images. Robert Altman. Reino Unido: Lion’s Gate Films, 1972.
[31] Willem Flusser, Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Rio de Janeiro, Sinergia Relumé Dumará, 2009.
[32] Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros ensaios, Campinas, Papirus, 1993. p. 32. Tradução de Marina Appenzeller.
[33] Ibidem. p. 36.
[34] Ibidem. p. 45.
[35] Norval Baitello Junior, A era da iconofagia. Ensaios de comunicação e cultura, São Paulo, Hacker Editores, 2005, p. 20.
[36] Ibidem. p. 23.
[37] Philippe-Alain Michaud, “Nova York: o palco cinematográfico”, Aby Warburg e a imagem em movimento, Rio de Janeiro, Contraponto, 2013. p. 46.
[38] Norval Baitello Junior, op. cit. p. 17.
[39] Philippe Dubois, op. cit. pp. 18-19.
[40] Willem Flusser, op. cit. p. 28.
[41] Corrado Farina, “Luce rosse su fondo bianco”, Storia di sesso e di fumetto, Mare Nero Editore, E-Book Kindle, 2012 p. 146.