A representação de tipos e cenas do Brasil imperial pela Litografia Briggs

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> autores

Maria Inez Turazzi

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É graduada em história pela Universidade Federal Fluminense e doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Museu Imperial (Petrópolis, Rio de Janeiro), bolsista de pesquisa e consultora ad-hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é autora de diversos artigos publicados no Brasil e no exterior sobre a cidade do Rio de Janeiro, suas imagens e seu patrimônio. Entre os livros que publicou, destacam-se: Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo / 1839-1889 (1995), Marc Ferrez (2000), Rio de Janeiro-Buenos Aires, duas cidades modernas.1900-1930 (2004, em co-autoria), O Brasil de Marc Ferrez (2005, em co-autoria); Iconografia e patrimônio: a Exposição de História do Brasil e a fisionomia da nação (2009); Um porto para o Rio; imagens e memórias de um álbum centenário (2012, em co-autoria).





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> como citar este artículo

Maria Inez Turazzi; «A representação de tipos e cenas do Brasil imperial pela Litografia Briggs». En Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 3 | Año 2013 en línea desde el 4 julio 2012.

> resumen

As imagens da Litografia Briggs que integram a coleção Geyer, brasiliana doada ao Museu Imperial (Petrópolis, Brasil), em 1999, exibem uma galeria de personagens anônimos que viviam, trabalhavam ou simplesmente circulavam pelas ruas do Brasil imperial, e da cidade do Rio de Janeiro em particular, entre as décadas de 1830 e 1850. Traçado na pedra calcária, esse mosaico de tipos e cenas cotidianas do país nos oitocentos compõe um retrato singular da sociedade da época. As imagens analisadas neste artigo formam o conjunto mais expressivo de que se tem notícia, reunido em uma única coleção, sobre as atividades dessa litografia. São estampas que devem sua existência à facilidade de reprodução dos desenhos litográficos e à multiplicação desses desenhos, a preços módicos, em simples folhas de papel, hoje lamentavelmente reduzidos à condição de exemplares únicos e raríssimos da iconografia brasileira. Promover a apreciação, o conhecimento e a reflexão sobre esse conjunto de imagens é, seguramente, uma das formas de contribuir para a preservação de um acervo recém-incorporado ao patrimônio público para as futuras gerações.

Palabras clave: Brasil oitocentista, cultura visual, litografia Briggs, tipos sociais, coleção Geyer

> abstract

The images from Briggs’ lithography assembled by the Geyer collection, “brasiliana” donated to the Imperial Museum (Petrópolis, Brasil) in 1999, show a gallery of anonymous personages that lived, worked or simply went around the streets of the Brazilian Empire, and specially of the city of Rio de Janeiro, between the decades of 1830 and 1850. This mosaic –composed by types and scenes from the daily life of the country in the nineteenth century and outlined over calcarea stone– frame a singular portrait of that society. The images analysed by this article are known as the most impressive assemblage of lithographies in a single collection. These prints due their existence to the easy reproduction and multiplication of lithographic drawings in simple and inexpensive sheets of paper, nowadays unfortunately reduced to rare and unique specimens of Brazilian iconography. The appreciation, knowledge and reflection on these images are, certainly, ways to contribute to the preservation of this collection for new generations.

Key Words: Nineteenth century Brazil, visual culture, Briggs lithography, social types, Geyer collection

A representação de tipos e cenas do Brasil imperial pela Litografia Briggs

Introdução: a coleção Geyer[*] 

 

Procurem as cenas públicas, observem as ruas, os mercados,

as casas e ficarão com a idéia exata do verdadeiro movimento nas atividades da vida.

Denis Diderot. Essais sur la peinture (Paris, 1785)

 

A coleção Geyer, doada ao Museu Imperial (Petrópolis, Brasil), em 1999, reúne uma galeria de personagens anônimos das ruas do Rio de Janeiro em meados do século XIX, traçados na pedra calcária por Frederico Guilherme Briggs (1813-1870) e seus parceiros na arte e no comércio de estampas. Esse mosaico de tipos e cenas do Brasil imperial já nasceu prolífico. Graças à reprodutibilidade dos desenhos litográficos e à multiplicidade dessas pequeninas estampas, hoje lamentavelmente “reduzidas” (ou “elevadas”) à condição de exemplares únicos e raríssimos da iconografia brasileira, podemos recuperar, no horizonte da história, algumas minúcias e sutilezas de um engenhoso e excepcional panorama da época.

O interesse pela oficina litográfica de Frederico Guilherme Briggs é dos mais antigos entre estudiosos e colecionadores da iconografia brasileira, tendo sido amplamente demonstrada a sua importância, já na segunda metade do século XIX, pelo Catálogo da Exposição de História do Brasil, publicado pela Biblioteca Nacional, em 1881. O projeto de uma exposição com abrangência nacional dedicada à documentação e à afirmação da chamada “história pátria” inspirou-se na experiência acumulada com a promoção de exposições artísticas e industriais que há tempos já eram realizadas no país e no exterior. Mas a proposta da Exposição de História do Brasil de 1881 era também uma iniciativa inteiramente original. Concebida como etapa importante do processo de construção simbólica da nação, ela acabou resultando no maior e mais completo inventário, até aquela data, do patrimônio documental brasileiro.[1] No decorrer do século XX, estampas avulsas, panoramas e álbuns da Litografia Briggs foram também garimpados no exterior e “repatriados” para coleções brasileiras, como são exemplos quase todas as litogravuras desse estabelecimento reunidas pela Coleção Geyer.

O historiador Gilberto Ferrez, reconhecida autoridade em iconografia brasileira, era de opinião que as quatro vistas do Panorama da cidade do Rio de Janeiro, uma das obras primas desenhadas e litografadas por Briggs, “são das mais belas da iconografia carioca, não só pelo caráter artístico, como também pela elaboração, detalhes arquitetônicos, perspectiva e beleza dos primeiros planos”. Pesquisando as estampas da oficina Briggs existentes na coleção Geyer, Ferrez observara que tais obras estavam em perfeito estado de conservação e sem cortesnas margens, isto é, com todas as legendas originais, o que nem sempre podia ser encontrado nos exemplares de outras coleções. Conhecedor dos acervos reunidos por colecionadores e instituições, públicas ou particulares, do Brasil e do exterior, Ferrez também assegurava que os álbuns de estampas da oficina Briggs haviam se tornado “as maiores raridades bibliográficas e iconográficas do país, cujas coleções completas contam-se nos dedos”.[2]

Tendo sobrevivido à ação do tempo, da natureza e dos homens, as imagens com a marca da oficina Briggs são, de fato, extremamente raras, encontrando-se pouquíssimas estampas do gênero em outras coleções e instituições do país. Pelas características dessa iconografia, desprovida de qualquer luxo, por sua fragilidade intrínseca ou pelo excesso de manuseio, os exemplares de álbuns, panoramas, caricaturas e tipos de rua, publicados em série e às dezenas por Frederico Guilherme Briggs, foram desaparecendo e se tornando cada vez mais escassos. Preservar, estudar e exibir o conjunto reunido pela coleção Geyer, oferecendo-o a novas leituras e interpretações, pareceu-nos assim o melhor meio de promover a sua divulgação e de assegurar a sua permanência no tempo, como parte de um acervo incorporado ao patrimônio público pelo casal Maria Cecília e Paulo Geyer há pouco mais de uma década, mas ainda em usufruto da família. Em 2002, esse conjunto foi reproduzido na íntegra, em edição bilingüe, oferecendo a pesquisadores e estudantes a oportunidade de novos olhares sobre a quase totalidade dos exemplares conhecidos dessa preciosa iconografia do Brasil imperial.[3] Uma oportunidade que se renova e se amplia, consideravelmente, com a publicação online deste artigo na revista Caiana.

Frederico Guilherme Briggs e sua oficina

Um conjunto expressivo de estampas da Litografia Briggs pode ser consultado, agora inclusive através da internet, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, instituição que publicou algumas obras de referência sobre o artista, como a edição fac-similar do álbum The Brazilian souvenir, precedido de um estudo histórico-biográfico sobre Frederico Guilherme Briggs e sua oficina assinado por Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha.[4] Devemos à autora desse estudo, então responsável pelo setor de iconografia da Biblioteca Nacional, um levantamento pioneiro dos dados mais consistentes sobre a vida e as atividades profissionais de um dos mestres da litografia no Brasil.[5] As informações a seguir, complementadas com outras fontes, sintetizam esses dados antes de procedermos à análise do tema propriamente dito deste artigo.

Frederico Guilherme Briggs nasceu no Rio de Janeiro, a 14 de setembro de 1813, filho do comerciante inglês William Briggs, protestante luterano radicado na cidade desde o ano anterior, e de Angélica de Paula Briggs, católica. Segundo documentos da época, no entanto, o próprio Frederico Briggs ora declarava-se “brasileiro”, ora “cidadão inglês”: com vinte e quatro anos, ao retornar de uma viagem à Inglaterra, apresentou-se às autoridades brasileiras como se tivesse nascido naquele país. Ainda jovem, frequentava como ouvinte as aulas de Arquitetura e Paisagem da Academia Imperial de Belas Artes e, em 1832, já publicava um anúncio nos jornais do Rio de Janeiro como “professor de desenho”. Nesse mesmo ano, inaugurou uma sociedade com o artista francês Edouard Philippe Rivière, a Litografia Rivière & Briggs, estabelecida à Rua do Ouvidor nº 218, iniciando então a impressão de imagens de tipos populares, fatos memoráveis e personalidades da vida política do país. À época, estavam em funcionamento na cidade do Rio de Janeiro quatro estabelecimentos litográficos particulares.

Em 1833, Briggs participou de um concurso da Academia Imperial, concorrendo à vaga de professor-substituto da aula de Paisagem, juntamente com outros quatro candidatos. O pintor Augusto Müller (1815- c.1883) ficou em primeiro lugar, mas o concurso acabaria anulado. Com Joaquim Lopes de Barros Cabral (1816-1863), seu colega na Academia e um dos candidatos, Briggs e o sócio Rivière iniciaram o desenho e a impressão litográfica de tipos de rua. Em 1836, ele viajou para a Inglaterra, levando na bagagem o Panorama da cidade do Rio de Janeiro, já citado,e outros estudos de sua autoria, além de vinte e cinco vistas da Corte e retratos do imperador d. Pedro II e suas irmãs, desenhados pelo francês e professor da Academia Félix Émile Taunay (1795-1881) e destinados à impressão de uma Folhinha Nacional Brazileira para o anno de 1837. O panorama e a folhinha foram, de fato, litografados no ano seguinte nas oficinas da firma Day & Haghe, de Londres, e ao que tudo indica pelo próprio Briggs. Ele também desenhou e litografou nesse estabelecimento a “grande Cascata da Tijuca” (Tejúca [sic] Waterfall), datada de dezembro de 1836. (Fig.1)

Ao voltar da Inglaterra, Briggs reabriu seu estabelecimento, agora em novo endereço (Rua do Ouvidor nº 151), anunciando nas páginas do Jornal do Commercio os panoramas litografados em Londres e as estampas de cunho político que começava então a imprimir (Nº1 Estado de hum eleitor em 1839; Nº 2 Candidatos de Mefistófeles; Nº 3 Funeral do Sete; Nº 4 Apotheose do Sete; Nº 5 Escáda de Jácob [sic]; Nº 6 Nabuco de Nosor [sic]; Nº 7 Napoleoncellos visitando o túmulo do Sete). Publicadas no Caricaturista e dirigidas ao parlamentar Bernardo Pereira de Vasconcellos (1795-1850), essas estampas integravam a primeira série de caricaturas litografadas no Brasil com críticas à política da época. Embora não fosse o autor dos desenhos, Briggs parece ter sido o responsável pelas litografias, ainda que tenha declarado na época, em anúncio do Jornal do Commercio, “que nenhuma responsabilidade tem no jornal Caricaturista, pois é apenas seu impressor”.[6] No mesmo jornal, anunciaria no ano seguinte outras caricaturas e vistas do Rio de Janeiro, além de um Retrato de Juan Manuel Rozas, governador da província de Buenos Aires e figura emblemática da cena política para todo o continente latino-americano, como a própria impressão dessa estampa na capital do Império brasileiro já nos sugere.

No início dos anos 1840, os jornais indicavam a intensa atividade de seu estabelecimento. A Litografia Briggs voltava-se, então, para a impressão de uma nova série de estampas, dedicada aos Costumes Brazileiros. Essa série, adquirida por subscrição e composta de cinquenta litogravuras coloridas, levava a assinatura do artista “Lopes” e sua conclusão só ocorreria em 1841. Um dos anúncios indicava: “Precisa-se na litografia da Rua do Ouvidor, nº 130, de um hábil impressor litógrafo”.[7] Em outros, Briggs prometia a publicação de um “abecedário manual, ou novo método de falar pelos dedos, litografado e colorido, pelo qual qualquer pessoa poderá dentro de poucas horas ficar prático”. Para responder aos novos projetos, Briggs inaugurou uma nova sociedade, em fins de 1843, com Peter Ludwig (c.1814-após 1876), litógrafo experiente, natural da Prússia, chegado ao Rio de Janeiro em 1840 (entre 1841 e 1843, Ludwig voltara à Europa, tendo se aperfeiçoado e adquirido novos equipamentos). A Litografia Ludwig & Briggs iniciaria suas atividades no ano seguinte, à Rua do Carmo nº 55, tornando-se em pouco tempo um dos mais ativos estabelecimentos litográficos do Rio de Janeiro. Entre 1844 e 1870, seus anúncios foram sistematicamente publicados nos jornais da Corte e, também, no Almanack Laemmert, a principal publicação destinada à divulgação dos profissionais, serviços e instituições de inúmeras atividades, tanto na capital como nas províncias do Império, ao longo de todo o século XIX.

No fim da década de 1840, a Litografia Ludwig & Briggs transferiu suas atividades para a Rua dos Pescadores nº 88, dedicando-se ali à impressão de desenhos, mapas, diplomas, faturas, circulares, cartões, bilhetes de loteria, letras de câmbio e todo tipo de estampas. Uma das mais importantes produções litográficas realizadas no novo endereço, já na década seguinte, foi o álbum The Brazilian Souvenir: a selection of the most peculiar costumes of the Brazils, com desenhos atribuídos ao artista alemão Eduard Hildebrandt (1818-1869), chegado ao Rio de Janeiro em 1844. A cidade do Rio de Janeiro contava então com treze estabelecimentos litográficos particulares, entre os quais estava a Litografia Ludwig & Briggs. O estabelecimento já havia então transferido novamente suas oficinas, agora para a Rua dos Ourives nº 142, onde funcionaria até 1870. A 30 de abril desse ano, morreu no Rio de Janeiro, onde foi enterrado, o litógrafo Frederico Guilherme Briggs, mas a Litografia Ludwig, Briggs & Cia., com novos sócios, ainda manteria suas atividades até 1877.

Pelas ruas do Rio de Janeiro

As estampas da Litografia Briggs são registros visuais de temporalidades e espacialidades bem definidas, isto é, de uma época em que o país, vivendo sob o regime escravista, atravessava a transição do Primeiro Reinado para o Segundo, marcada pela instabilidade política e pela expansão das atividades portuárias, comerciais e de serviços na cidade do Rio de Janeiro.[8] Neste aspecto, a transformação do centro urbano da capital do Império, cada vez mais populoso, em palco dos acontecimentos políticos e sociais da Corte, como também no território onde emergiam novas formas de sociabilidade, deve ser aqui assinalada como uma característica importante do contexto histórico em questão, diretamente relacionada com as representações da cidade criadas pela Litografia Briggs.

Nessa cidade que “crescia”, concentrada em torno de igrejas, como as da Candelária, São José, Santa Rita, Sacramento e outras (em 1821, as freguesias urbanas do Rio de Janeiro somavam 79.321 livres e cativos e, em 1870, elas já computavam 191.002 habitantes), a população escrava chegou inclusive a ultrapassar a população branca (como na freguesia da Candelária).[9] Numa cidade como esta, a figura do escravo era vital para a existência coletiva. À mão-de-obra escrava estavam destinados não apenas os afazeres domésticos, mas também os serviços urbanos essenciais e uma gama de novas e velhas atividades comerciais (das mais lucrativas às mais singelas), onde um número cada vez maior de negros passava também a ser utilizado pela população branca como “escravos de ganho” ou “de aluguel”. [10]

Dentro desse quadro, os tipos e cenas representados nas estampas da Litografia Briggs não deixam de ser uma espécie de “recenseamento iconográfico” das atividades econômicas e dos estratos sociais que compunham a população do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX. Estão ali os “soldados da Guarda Nacional”, os “estudantes da Escola Militar”, os “tropeiros de Minas”, os “pedintes de irmandades”, os “frades de Santo Antônio”, os “marinheiros” do cais do porto e as “famílias que vão à missa”, entre outros. Essas figuras representavam a parcela da população branca que podia ser vista circulando pelas ruas da cidade, embora essas mesmas ruas estivessem, de fato, tomadas por pretos “da iluminação pública”, “do lixo”, “do açougue”, “carregadores de café” e por uma infinidade de negros e negras vendendo toda sorte de mercadorias, como água, carvão, galinhas, hortaliças, caldo de cana, balas, doces e bonecas (ou “bonecras”, como também se dizia no século XIX, embora em uma das estampas a palavra tenha sido sugestivamente trocada pelo litógrafo para “bonegras”) (Figs. 2-3).

O livro Negro na rua, publicado por ocasião do centenário da abolição da escravatura no Brasil (1988), procurando fugir à visão do negro como “elemento pitoresco” da cidade, sempre tão presente nas descrições e memórias de antigos viajantes, trouxe a público o resultado de um amplo levantamento documental sobre esta “nova face da escravidão” representada pelo escravo urbano e seu papel como parte do “quadro explicativo das características da cidade do Rio de Janeiro”, tema até então bem pouco estudado pela historiografia.[11] Sendo o comércio de escravos um dos grandes negócios do Império brasileiro e o comércio com escravos um dos expedientes mais utilizados pela população branca do Rio de Janeiro para garantir e aumentar os seus ganhos, como fica demonstrado pela pesquisa de Marilene da Silva, uma das questões mais interessantes apontadas pela autora é justamente o modo como “a escravidão e a cidade adaptavam-se uma à outra”. [12]

Nas últimas décadas, uma vasta produção historiográfica e cultural, dentro e fora do meio acadêmico, tem renovado os debates e as interpretações sobre a presença afro-descendente na sociedade brasileira, assim como sobre a cultura visual do século XIX.[13] As estampas da Litografia Briggs são, seguramente, uma fonte insubstituível para o enriquecimento e a renovação dos estudos sobre as formas de visualidade da escravidão na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, entre outros temas.

Arte e comércio de estampas

No campo das artes visuais, a primeira metade do século XIX assistiu ao aparecimento e à propagação de novos meios técnicos de criação e reprodução de imagens. A invenção da litografia na Alemanha, por Aloïs Senefelder, em 1796, e sua ampla difusão, em todo o mundo, nos anos seguintes; o anúncio da invenção do daguerreótipo pelos franceses, em 1839, e o sucessivo desenvolvimento de outros processos e formatos fotográficos; a difusão da imprensa periódica ilustrada, com a adaptação da xilogravura à máquina impressora (o Illustrated London News, por exemplo, surge em 1842 e o L’Illustration, em 1843); além da popularização da charge política e da caricatura de costumes são, no seu conjunto, indicadores da pluralidade de técnicas e de aplicações da imagem que dinamizaram a cultura visual do período.

O Brasil também estava inserido nessa nova “economia visual”, expressão definida por Stephan Bann como “a totalidade dos meios de reprodução iconográfica disponíveis em uma determinada época: não somente os dispositivos específicos de cada técnica, de seus custos e de sua eficácia, mas também os diversos modos contemporâneos de publicação e de difusão”.[14] Com relação à litografia, especificamente, sabemos que ela foi introduzida no país por Johann Jacob Steinmann (1800-1844), contratado pelo governo imperial, em 1825, para instalar e dirigir, por cinco anos, a oficina litográfica da Academia Militar, situada no Rio de Janeiro. Mas a novidade não ficou restrita à capital do Império, nem às instituições oficiais, como o demonstram algumas obras da Coleção Geyer, notadamente uma Vista do farol e interior do porto de Pernambuco tomada do Poço, da “Litografia de Secretan em Pernambuco”, datada já de 1827. As livrarias, tipografias e outras “lojas de papel” (como Briggs caracterizava seu estabelecimento) situadas na capital do Império promoviam a encomenda, a impressão, a exposição e a venda de aquarelas, gravuras e litogravuras que acabavam chegando a outras regiões do país (a fotografia entraria nesse rol em meados do século XIX). Por outro lado, as vistas desenhadas no Rio de Janeiro, assim como as primeiras fotografias (daguerreótipos da década de 1840) logo estariam sendo impressas em Paris ou Londres, transpostas pela pedra litográfica ou pela placa impressora (xilogravura) para folhas de papel que multiplicavam aquelas imagens.

A litografia já nasceu marcada por convenções pré-existentes no campo das artes visuais, mas ela estabeleceria formas próprias de convivência com as artes do desenho, da pintura e da gravura, bem mais antigas. Imagem reprodutível e múltipla, o desenho litográfico era um convite às transcrições, cópias e adaptações que, na economia visual do século XIX, promoviam releituras do mundo visível documentado pelas diferentes formas de representação iconográfica então existentes. O panorama do Rio de Janeiro, desenhado e litografado por Briggs, posteriormente reproduzido com modificações pelo litógrafo Legrand para o Universo pittoresco (1844), de Lisboa, adaptado mais tarde pelo litógrafo J. Schutz para o Album pittoresco do Rio de Janeiro (1852) e ainda outra vez reproduzido na Illustração popular (1853), foi um dos exemplos, entre muitos outros igualmente interessantes, das combinações e adaptações possíveis no interior dessa economia.

A própria história de Frederico Guilherme Briggs também nos fornece elementos reveladores da dinâmica desse processo, além de singularidades da trajetória do artista: o aprendizado de desenho na Academia Imperial de Belas Artes e o contato com artistas de origem francesa, como Grandjean de Montigny e Félix Émile Taunay; a sociedade comercial com estrangeiros (um francês e, depois, um prussiano), igualmente decididos a sobreviver no Brasil do negócio de estampas; o estabelecimento de sua oficina, no ano de 1832, à Rua do Ouvidor, coração do Rio de Janeiro, onde então começava a se concentrar um promissor mercado de vistas e panoramas da cidade; a viagem para a Inglaterra, entre 1836 e 1837, e o aperfeiçoamento do artista no principal estabelecimento litográfico da capital inglesa, a firma Day & Haghe; a articulação com outros litógrafos, impressores e editores para a realização de um empreendimento editorial pioneiro, o “jornal literário e pictorial” Ostensor brasileiro, lançado no Rio de Janeiro, em 1845; quando a arte e o comércio de estampas eram ainda uma novidade no Brasil, ele já comandava um dos primeiros (e, logo, um dos melhores) estabelecimentos litográficos particulares do país (Fig. 4).

Nesse sentido, podemos afirmar que as imagens da Litografia Briggs evidenciam a transformação de um artista de “traço rude”, “pouco treinado e inexperiente”, recém-saído da Academia, em um litógrafo de olhar aguçado, dotado de humor e sensibilidade, com apurado senso de oportunidade. Como desenhista e litógrafo dos tipos de rua do Rio de Janeiro, juntamente com Rivière, Lopes e Ludwig, Briggs tornou-se o autor de um relato meticuloso, ainda que fragmentado, da vida cotidiana na capital do Império, personificada por aqueles que dividiam o seu tempo entre o trabalho, o castigo e umas poucas alegrias. O mesmo Briggs, no entanto, não deixaria de estar atento à moda dos panoramas e das folhinhas ilustradas, assim como aos acontecimentos memoráveis da vida nacional. Nesse particular, ele realizou aquela que parece ter sido a primeira “reportagem litográfica” do país, ao lançar, no dia 24 de julho de 1841, três estampas que representavam “a catástrofe do Palacete” (um incêndio no pavilhão construído no Campo de Santana, no centro do Rio de Janeiro, para as festas de coroação do imperador Pedro II).[15]

Arte e razão comercial moviam esse nascente e já promissor mercado de estampas da capital do Império, podendo ser também atribuída a Briggs, em 1840, “a primeira tentativa de organizar um álbum de costumes brasileiros em tiragem multiplicada pela impressão litográfica”.[16] A publicidade do álbum Costumes Brazileiros nas páginas do Jornal do Commercio, a exemplo do que ocorria com outros empreendimentos editoriais lançados por subscrição, é bastante elucidativa da combinação desses dois elementos. Os termos do anúncio naquele que era um dos principais jornais do país parecem demonstrar a atenção e a sensibilidade do artista, aliadas ao senso prático do comerciante de estampas, para valores como o ineditismo, a regularidade e a qualidade das imagens impressas em seu estabelecimento litográfico:

Costumes do Brasil. Não tendo até aqui sido publicada uma coleção de costumes do país, Frederico Briggs com litografia na Rua do Ouvidor, n. 130, se propõe a litografar uma coleção de 50 números, saindo cada semana dois números, às terças e sábados; cada número será litografado em bom papel e colorido; formato em quarto de papel de Holanda e bem desenhado. Subscreve-se na litografia de Briggs, rua do Ouvidor, n. 130. Preço da assinatura pelos 50 números 6 rs. Avulso 160 rs. Terça-feira 18 do corrente sairá à luz o primeiro número; representa um oficial e soldado da Guarda Nacional de caçadores.[17]

Os anos de atividade (c.1832-1870) da oficina dirigida por Frederico Guilherme Briggs correspondem, como já foi apontado, ao período de maior popularidade da litografia no Brasil e sua difusão internacional. Em 1857, por exemplo, o álbum The Brazilian souvenir, litografado pouco tempo antes no Rio de Janeiro por Ludwig & Briggs, já era usado nos Estados Unidos como matriz para a ilustração do livro de Daniel Parish Kidder (1815-1891) e James Cooley Fletcher (1823-1901), intitulado Brazil and the Brazilians portrayed in historical and descriptive sketches (Philadelphia, Childs and Peterson, 1857). Das cento e cinquenta gravuras que ilustravam o relato de viagem dos pastores norte-americanos, dezesseis figuras foram reproduzidas do álbum The Brazilian souvenir. A mobilidade desse gênero de iconografia e a amplitude desse tipo de negócio, desconhecedoras de fronteiras geográficas, asseguravam a ampla difusão dessas pequenas estampas, qualidade em grande parte responsável pela expansão do “visivo” no mundo oitocentista.

Mas há outro aspecto interessante na atividade de Briggs e demais litógrafos estabelecidos no Rio de Janeiro, e no Brasil como um todo, nessa época: diferentemente do que ocorria em Paris ou Londres, em um país escravista como o nosso também se empregavam escravos e libertos no dia-a-dia das oficinas, a mesma gente que, afinal, seria retratada pelas estampas vendidas mais tarde a artistas, comerciantes, funcionários do governo, eclesiásticos, advogados, médicos, jornalistas, militares e estrangeiros de toda sorte que estivessem por ali de passagem ou fixando residência.[18] Eram esses os personagens da cidade que compunham, simultaneamente, a inspiração e a clientela do mercado de estampas do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX.

Os tipos de rua

É fácil observar que as imagens de escravos, mineiros, soldados e eclesiáticos da Litografia Briggs não foram feitas com o objetivo de personalizar as figuras ali representadas, nem tampouco foram concebidas com a intenção explícita de ridicularizá-las. A caricatura, como estratégia de “desprestígio” e como veículo de propaganda, ainda estava na sua infância quando surgiu a Litografia Briggs. No Brasil, ela apareceu como “novidade importada da Europa” em 1837 e, em 1839, Briggs já se dedicava à impressão e comercialização desse novo gênero (antes disso, os nossos costumes, considerados “extravagantes” e “ridículos” por tantos viajantes, já tinham sido ironizados por um certo “A.P.D.G.”).[19] Em 1840, Briggs continuaria com as caricaturas, produzindo aquela que é considerada a primeira a representar os festejos do entrudo, o carnaval da época, e seus “funestos” resultados, quando a principal brincadeira consistia em molhar os outros com água.[20] (Fig. 5)

As estampas de tipos de rua da Litografia Briggs tampouco pertencem àquele gênero de retrato, ornado por uma bela moldura, destinado a ser exibido nos salões da Academia Imperial de Belas Artes ou nas paredes de luxuosos palacetes. Não há ali retratos da “boa sociedade”, embora estes também tenham sido impressos em sua oficina, usando as mesmas ferramentas e pedras litográficas. As figuras representadas nessas pequeninas estampas, não frequentando salões de arte nem residências aristocráticas, só podiam ser encontradas nas ruas, becos, travessas, fontes, chafarizes e portas de igreja da cidade. Foram retratadas para serem multiplicadas às dezenas, em folhas avulsas e em pequenos álbuns destinados à circulação pública e à apropriação descompromissada, embora também pudessem servir a estudos e relatos de viagem. Por isto mesmo, essas estampas são registros que categorizam os indivíduos, procurando documentá-los a partir de seus gestos, atitudes, roupas, atributos e ocupações. A linguagem dos corpos e as diferenciações de gênero, origem ou atividade são realçadas, numa época em que a imagem fotográfica ainda não era uma realidade capaz de fazê-lo. Trata-se, portanto, de uma “documentação taxinômica”, que opera a distinção e a classificação dos indivíduos.

Sendo Briggs um indivíduo que se apresentava como “cidadão inglês”, embora em outras ocasiões também se dissesse “brasileiro” e “fluminense”, não deixam de ser interessantes as explicações de um folheto sobre “costumes, ocupações e hábitos” de vários povos (ingleses, chineses, russos, turcos, etc.), lançado em 1821 e localizado no acervo da Biblioteca Nacional. Diz o editor, na apresentação que faz da série de folhetos, que os indivíduos “desenhados com escrupulosa fidelidade” em seus países de origem, eram ali representados por figuras de “diversas classes da sociedade”, com “diferentes profissões” e “uma fisionomia falante”. E acrescentava:

Um amador pode assim, sem sair de seu país, ter uma idéia dos costumes de todas as nações do globo; ele os comparará entre si, ele se instruirá de seus hábitos mais marcantes e de uma infinidade de detalhes curiosos que não seriam conhecidos a não ser por longas e penosas viagens.[21]

Como personagens anônimos e, ao mesmo tempo, emblemáticos de determinada época e lugar, os tipos representados pela Litografia Briggs descendem de uma longa tradição criada e recriada na cultura ocidental pela ciência, pela literatura e pelas artes visuais. Da arte de conhecer o “caráter” das pessoas por seus traços fisionômicos (a chamada “fisiognomonia”) nascera, no final do século XVIII, uma preocupação com o indivíduo e sua identificação, com a construção de identidades coletivas associadas não mais aos traços raciais, mas às ocupações, vestimentas, hábitos e linguagens que emergem das ruas das cidades.[22] A caracterização do tipo de rua configurava-se, assim, como uma estratégia de representação da unidade a partir de um conjunto variado de possibilidades e, ao mesmo tempo, como uma das formas de expressão da identidade de determinado grupo, caracterização moldada entre nós no gosto pelo pitoresco e no viés etnocêntrico da crônica de costumes.

Precursores desse gênero de iconografia no Brasil, as “figurinhas ingênuas” de Carlos Julião (ainda no século XVIII) e os tipos “copiados do natural” por Joaquim Candido Guillobel (c. 1814) saíram das ruas do Rio de Janeiro e ingressaram, mais tarde, nas obras de vários artistas, como Löwenstern, Thomas Ender, Jean-Baptiste Debret e tantos outros, entre os quais, possivelmente, o próprio Briggs. Das ruas da cidade também sairiam, já na segunda metade do século XIX, a série de escravos fotografados por Christiano Junior e os vendedores ambulantes registrados por Marc Ferrez, todos eles reproduzidos às centenas com o advento da fotografia e com a moda dos cartões postais. Nesse sentido, se a documentação de tipos de rua pela Litografia Briggs não tem o mérito do pioneirismo, ela tem entre nós a particularidade de representar uma iniciativa precursora na exploração comercial e editorial desse gênero de iconografia, sistematicamente “reinventada” por artistas, fotógrafos e cronistas do país nas décadas seguintes.[23]

O tipo é, portanto, um ícone das ruas, esse outro personagem-símbolo da literatura e das artes visuais na cultura ocidental. Local da expressividade, mas também dos novos perigos representados pelos tipos que passam a ocupá-la, a rua é, por princípio, o cenário onde podem ser encontrados os indivíduos a classificar e a documentar. A mais emblemática no Rio de Janeiro, no período aqui focalizado, era a Rua do Ouvidor, justamente onde Briggs fincou seu estabelecimento durante quase todo o tempo em que esteve em atividade. Rua “francesa”, no dizer de tantos contemporâneos, e que por isso mesmo poderia parecer inverossímil como cenário inspirador de tipos que vão “buscar água”, “vender porcos”, “carregar o lixo” ou “levar açoites”. Na Rua do Ouvidor, como se sabe, passeavam a elegância e a inteligência da “boa sociedade” do Império. Em tempos de escravidão, sobretudo nas primeiras décadas do século XIX, as semelhanças com uma rua parisiense ficavam restritas às calçadas. O alemão Carl Schlichthorst, residindo na cidade entre 1824 e 1826 como soldado contratado peloExército imperial, logo percebeu a diferença entre uma e outra, lançando seu olhar, justamente, em direção ao movimento da rua e às atividades da vida:

A Rua do Ouvidor tem aspecto singular e nela, por momentos, a gente se julga em Paris. Caixeiras exageradamente pintadas, com cinturas finas e olhos à espreita, exibem gastos encantos diante de espelhos, cosem em atitude elegante ou lançam as redes de seus olhares pela longa fila das lojas, o que até certo ponto lembra o Palais-Royal. Mas se se observa a rua, tudo muda completamente. Há três vezes mais pretos do que brancos, aos gritos e pulos, tratando de sua vida. Bonitas negras de vestido de cambraia branca, com turbantes encarnados, vendem pastéis, balas e os próprios encantos. À noite, à luz dum lampeão, negros robustos, que repartem os ganhos do dia, brigam por causa duma moeda de cobre indivisível; honradas famílias brasileiras dão seu passeio, as crianças à frente, depois as filhas adultas, por fim o pai e a mãe vigiando a longa e vagarosa procissão, que escravos e escravas, com fedelhos adormecidos nos braços, completam; de quando em quando, uma formosa leviana, completamente envolta na mantilha ou numa capa escocesa, atravessa a rua; patrulhas policiais marcham a passo cadenciado; passam leves carros puxados por mulas e iluminados por archotes; as guitarras ressoam no seio da noite movimentada e, sobre tudo isso, se arqueia o céu tropical azul-negro, recamado de luminosas constelações.[24]

Por uma inversão natural, as figuras e cenas descritas acima até parecem ter “saído” das estampas reproduzidas pela Litografia Briggs. Mas elas são, na verdade, a sua fonte inspiradora. E como tal, sugeriram aos litógrafos do estabelecimento os pormenores necessários para a composição de um panorama da cidade minucioso e sutil. Nos tipos retratados por Briggs e outros, os detalhes que compõem os últimos planos de várias litogravuras permitem entrever monumentos, instituições e logradouros que caracterizam a paisagem urbana do Rio de Janeiro. Em Estudante da Escola Militar, vemos o prédio onde ficava a instituição, ainda hoje existente no Largo de São Francisco; em Preto vendendo agôa [sic], o antigo chafariz do Largo da Carioca, já demolido; em Hum arqueiro, a entrada do Palácio de São Cristóvão; em A friar (um frade), o morro do Castelo visto do São Bento; em St. Antonio’s friars (frades de Santo Antônio), o convento do mesmo nome. Atrás de cada figura, um monumento apenas esboçado, mas capaz de ser reconhecido; uma cidade que não aparece, mas está subjacente. Em todos os detalhes, uma “rua” sugerida pelo litógrafo, para ser subentendida por cada um de nós (uma estampa de 1840, intitulada Cenas da rua do Ouvidor, é exceção bastante sugestiva). Por tudo isto, essa rua, buliçosa e desordenada, ainda que subjacente, configura-se como um elemento fundamental dessa iconografia. (Figs. 6-7)

O burburinho das ruas

Se as imagens podem ser tomadas como uma “narrativa”,[25] as estampas de tipos de rua da Litografia Briggs nos permitem várias “leituras”, sejam elas sugeridas pelas próprias figuras ou oferecidas por suas respectivas legendas (na acepção da palavra, “coisas que devem ser lidas”). Pode parecer óbvio afirmar que as legendas da Litografia Briggs são da maior importância para a compreensão das imagens que produziu. Afinal, em português ou inglês, com ou sem erros ortográficos, elas foram colocadas pelos litógrafos para classificar, individualizar e explicar os tipos retratados. Para tanto, eles adotaram como estratégia uma figura de linguagem empregada com freqüência na fala dos cariocas. Ela foi explicitada no exemplar intitulado Padre negro F… por antonomásia Repolho Roxo [grifo meu], existente no acervo da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro). Note-se que, até hoje, essa figura de linguagem (antonomásia) tem um nome bem pouco familiar. Mas a substituição de nome próprio por perífrase (isto é, a designação de alguém ou de algo que dê relevo a uma de suas qualidades, e não por seu nome) continua sendo, historicamente, um dos traços mais característicos e marcantes da linguagem popular no Rio de Janeiro. Pois é exatamente esse estilo de linguagem, saído das ruas, o recurso adotado pelos litógrafos da oficina Briggs para legendar as figuras de suas estampas.

Mas essas legendas têm ainda outra peculiaridade: elas nos permitem “ouvir” o barulho das ruas da cidade na primeira metade do século XIX e, em particular, a fala dos tipos que por ali transitavam. Sujas, barulhentas e mal iluminadas, as ruas do Rio de Janeiro no século XIX, sempre tão criticadas por viajantes e cronistas da cidade, foram descritas pelo jornalista Luiz Edmundo (1878-1961) com olhos e ouvidos de quem procurava ressaltar, já no começo do século XX, a face “doentia” e “atrasada” de nosso passado colonial.[26] Os sons do centro da cidade anteriores às reformas urbanas do prefeito Pereira Passos ainda aturdiam o cronista: o repicar insistente dos sinos das igrejas e o mexerico das boticas; a gritaria dos condutores de veículos e o ranger das rodas que raspavam o pedregulho áspero do calçamento; o latir de cães e o trânsito de vacas leiteiras com seus bezerros a reboque; a voz chorosa dos mendigos e o berreiro dos “pregões” que a tudo anunciavam.

Jamais o Rio de Janeiro teve, ao que parece, um número tão grande de vendedores ambulantes a berrar pelas ruas. Para a felicidade e paz dos ouvidos cariocas, a maioria desapareceu com o decorrer do tempo e os poucos vendedores de abacaxi e o de laranja, já gritam menos e se fazem anunciar por outros modos.[27]

Pois esse burburinho e essa agitação parecem estar contidos nas imagens que vemos aqui. As legendas da Litografia Briggs, como complementos do traço litográfico na estratégia de documentar e classificar os tipos de rua, atribuíram à representação dos corpos, suas vestimentas e ofícios, a sonoridade da voz humana e a familiaridade de expressões correntes no vocabulário carioca de então (como, por exemplo, nas bonecas “nha nha”, um apelativo afetuoso e familiar de “crianças que gostam de correr muito” e das que são “teimosas, voluntariosas, opiniáticas e mandonas”).[28] (Fig. 8)

De modo geral, essas legendas reproduziram a fala incorreta, as cantigas, os refrões e os apelativos da linguagem das ruas. Elas são, portanto, muito mais do que simples referências explicativas para as figuras representadas nessas estampas. Essas legendas são o registro textual e sonoro de figuras que tocam, cantam, compram, vendem, anunciam, pedem, rezam, pregam, aconselham, ordenam, exclamam e…. brigam (como os negros capoeiristas reunidos em maltas, acusados de provocar “desordens” na cidade). O silêncio parece dominar a cena apenas em imagens como a dos Negros que vão levar açoutes, Negro no tronco e Preto ao cepo. Por isso mesmo, a fala do Negro de balla e do Negro de ganho, transcrita pelo litógrafo em duas legendas, pode ser lida (e ouvida) como um dos traços mais ricos e interessantes dessa iconografia, além de ser uma raridade na documentação histórica brasileira, em todos os sentidos. (Figs. 9-10)

Para concluir esta leitura pessoal da narrativa que as imagens da Litografia Briggs me sugerem, restaria apenas dizer que Frederico Guilherme Briggs retirou das ruas as figuras que posteriormente ficariam confinadas, por anos a fio, ao espaço restrito dos antiquários, bibliotecas, arquivos e coleções particulares. O prazer de devolvê-las ao bulício das ruas por meio da impressão, em 2002, de um catálogo com todos os exemplares reunidos pela coleção Geyer e, agora, com a publicação deste artigo acessível a todos, é dos mais gratificantes.

 

 

Notas

[*] Este artigo, sem os ajustes aqui introduzidos, foi publicado como introdução à obra Maria Inez Turazzi (org.), Tipos e cenas do Brasil imperial; a litografia Briggs na coleção Geyer, Petrópolis, Museu Imperial, 2002. Publicação que compreende ainda uma bibliografia de referência e uma cronologia das atividades de Frederico Guilherme Briggs e sua oficina litográfica, além da reprodução de todas as imagens da coleção Geyer relacionadas ao litógrafo. O projeto foi também o tema de uma exposição temporária apresentada no Museu Imperial (Petrópolis, Brasil), em dezembro do mesmo ano.

[1] Biblioteca Nacional, Catalogo da Exposição de História do Brasil realizada pela Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro a 2 de dezembro de 1881,Rio de Janeiro, Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1881, 2 v. Considerado um “monumento da historiografia brasileira”, o CEHB continua sendo a principal obra de referência para o inventário e a identificação das estampas produzidas com a marca da Litografia Briggs.

[2] Gilberto Ferrez, Iconografia do Rio de Janeiro; catálogo analítico 1530-1890, Rio de Janeiro, Casa Jorge Editorial, 2000, 2 v., p. 19 e p. 356.

[3] Cf. Maria Inez Turazzi (org.), Tipos e cenas do Brasil imperial, op. cit.

[4] As principais informações sobre Frederico Guilherme Briggs e sua oficina foram publicadas em Lembranças do Brasil – Ludwig and Briggs, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1970 (edição fac-similar do álbum original, com introdução de Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha); Orlando da Costa Ferreira, Imagem e letra; introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada, São Paulo, Melhoramentos/Editora da Universidade de São Paulo/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977; ver também Renata Santos, A imagem gravada; a gravura no Rio de Janeiro entre 1808 e 1853, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2008.

[5] Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha, “Frederico Guilherme Briggs e sua oficina litográfica”, in Lembranças do Brasil – Ludwig and Briggs, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1970.

[6] Jornal do Commercio, 12 de abril de 1839.

[7] Jornal do Commercio, 16 de julho de 1840.

[8] O período regencial, compreendido entre a abdicação do imperador D. Pedro I (7 de abril de 1831) e a antecipação da maioridade (23 de julho de 1840) de seu filho, aclamado imperador D. Pedro II no ano seguinte, foi marcado pela agitação política e as manifestações de revolta de diferentes segmentos da sociedade (senhores, escravos, militares, libertos, etc.), em todo o Império, em disputa por seus respectivos projetos no processo de construção da nação. Cf. Marco Morel, O período das Regências (1831-1840), Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

[9] Eulália Maria Lahmeyer Lobo, História do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, IBEMEC, 1978. v. 1, p. 135 e p. 360.

[10] Os “escravos de ganho” desempenhavam atividades diversas a mando de seus senhores, para quem entregavam ao fim do dia ou de um período mais longo, no todo ou em parte, os rendimentos obtidos com essas atividades, entre as quais se destacava o comércio ambulante pelas ruas das cidades. Sobre o tema ver Luiz Carlos Soares, “Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”, Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, mar-ago 1988, pp. 107-142.

[11] Cf. Marilene Rosa Nogueira da Silva, Negro na rua; a nova face da escravidão, São Paulo, Hucitec/ Brasília, CNPq, 1988. Outras “faces” da escravidão e do negro no Brasil, publicadas recentemente, podem ser vistas em Nélson Aguilar (org.), Mostra do redescobrimento; negro de corpo e alma, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 2000 (curadoria de Emanoel Araújo); Emanoel Araújo; Francisco Weffort et al., Para nunca esquecer; negras memórias, memórias de negros, Rio de Janeiro, Ministério da Cultura, 2001.

[12] Marilene R. N. Silva, Negro na rua, op. cit., p. 85.

[13] Além das obras indicadas acima (nota 12), ver também Robert Slenes, Na senzala, uma flor, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; Carlos Eugenio Libanio Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas, Editora da Unicamp, 2001.

[14] Stephen Bann, “Photographie et reproduction gravée; l’économie visuelle au XIXe siècle”, Études Photographiques, n. 9, mai 2000, esp. p. 23.

[15] Orlando da Costa Ferreira, Imagem e letra; introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada , p. 210.

[16] Ver as obras citadas de Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha e Orlando da Costa Ferreira.

[17]  Jornal do Commercio, 15 de fevereiro de 1840.

[18] Frederico Guilherme Briggs, por exemplo, comunicava pela imprensa, em 29 de novembro de 1844, que tomaria “aprendizes impressores, dando-se-lhe logo casa, comida e algum salário”, preferindo “rapazes pardinhos ou crioulos”. Apud Orlando da Costa Ferreira, Imagem e letra; introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada, p. 211.

[19] A.P.D.G., Sketches of portuguese life; manners, costume and character, London, 1826. Obra de autor não identificado, publicada com esse pseudônimo na Inglaterra, satirizando a vida e os costumes de portugueses e brasileiros no século XIX, sobretudo em Lisboa e Rio de Janeiro. Contém vinte pranchas litográficas coloridas, sendo três relativas ao Brasil.

[20] Ver Herman Lima, A caricatura no Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1963, 4 v.

[21] J. B. B. Eyres, L’Anglaterre, ou costumes, moeurs et usages des anglais; suite de gravures coloriées, avec leurs explications, Paris, Librairie de Gide Fils, 1821.

[22] Jean-Jacques Courtine; Claudine Haroche, História do rosto; exprimir e calar as suas emoções (do século XVI ao início do século XIX), Lisboa, Teorema, 1995, esp. p. 115 e seg.

[23] A idéia de que “a rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social” foi amplamente desenvolvida por João do Rio, em A alma encantadora das ruas, Rio de Janeiro, 1908.

[24] Carl Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é (1824-1826), Rio de Janeiro, Getúlio Costa, 1949, p.116 (tradução de Emmy Dodt e Gustavo Barroso, a partir da edição original, publicada em 1829).

[25] Cf. Alberto Manguel, Lendo imagens, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

[26] Maria Inez Turazzi, Luiz Edmundo, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/ São Paulo, Imprensa Oficial, 2011.

[27] Luiz Edmundo, De um livro de memórias, Rio de Janeiro, 1958, p. 167.

[28] Agenor Lopes de Oliveira, Toponímia carioca, Rio de Janeiro, Prefeitura do Distrito Federal, 1935, p. 300.