Afetações e percursos formativos em eco-sensibilidades artísticas

Affectations and formative paths in artistic eco-sensitivities

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> autores

Daniela Franco Carvalho

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Bióloga com doutorado em Educação. Professora do Instituto de Biologia e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Coordenadora do Museu de Biodiversidade do Cerrado e pesquisadora no Grupo Amplia - Amálgama em educação, ciência e arte.

Eliane Regina Pereira

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Psicóloga com doutorado em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. É coordenadora do GT da ANPEPP: Psicologia, estética e arte. Atua na área da Psicologia da Saúde com ênfase nos processos de criação e práticas coletivas/grupais em contextos de saúde.

Recibido: 10 de febrero de 2023

Aceptado: 20 de junio de 2023





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> como citar este artículo

Daniela Franco Carvalho y Eliane Regina Pereira; “Afetações e percursos formativos em eco-sensibilidades artísticas”, caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA), n°22| segundo semestre 2023.

> resumen

Esse texto é sobre afetos e percursos formativos de uma docência universitária atravessada pela compreensão do poder da arte. Afeto entendido como alteração do corpo e dos pensamentos sempre que nossos corpos se relacionam com outros corpos. A sala de aula é espaço de encontro, são corpos-professoras se relacionando com corpos-aprendizes, são corpos-sujeitos em relação constante, na construção de percursos formativos, em uma dinâmica de afetações. Temos buscado na arte um recurso de afetação, acreditando na possibilidade de aumentar a potência de ação dos corpos envolvidos no percurso formativo. Trazemos narrativas sobre corpos e feminismos a partir da afetação de seis obras de arte produzidas por mulheres em formatos diversos no intuito de promover um diálogo entre as produções artísticas e a formação acadêmica. Apesar de vivermos em uma sociedade que exige rapidez na solução de problemas, buscamos formar profissionais críticos e criativos que experimentem os encontros e que estes se tornem campo fértil para a ampliação do pensamento. Acreditamos que o contato com a arte contribui na formação de um sujeito com uma capacidade criadora e reflexiva maior, que por sua vez é capaz de produzir práticas mais criativas, em contraposição à formação tarefeira que engessa o fazer.

Palabras clave: docência universitária, percurso formativo, produções artísticas, Afeto, eco-feminismo

> abstract

This text is about affections and formative paths of university teaching crossed by the understanding of the power of art. Affection is understood as an alteration of the body and thoughts whenever our bodies relate to other bodies. The classroom is a meeting space, where teacher-bodies relate to learner-bodies. Subject-bodies are in a constant relationship in the construction of formative paths and in a dynamic of affectations. We have sought in art a resource of affectation, believing in the possibility of increasing the power of action of the bodies involved in the formative path. We bring narratives about bodies and feminisms from the affectation of six works of art produced by women in different formats to promote a dialogue between artistic productions and academic training. Although we live in a society that demands speed in problem solving, we seek to train critical and creative professionals who experience encounters and that these become a fertile field for the expansion of thought. We believe that contact with art contributes to the formation of a subject with a greater creative and reflective capacity, which in turn produces more creative practices, as opposed to a task-oriented training that stifle doing.

Key Words: university teaching, training course, artistic productions, affection, ecofeminisms

Afetações e percursos formativos em eco-sensibilidades artísticas

Affectations and formative paths in artistic eco-sensitivities

Introdução

Esse é um texto sobre afetações e percursos formativos. Somos duas professoras universitárias, de áreas de formação muito diferentes, mas com a docência atravessada pela compreensão do poder dos afetos e da arte. Entendemos que somos constituídas pelo e no coletivo, portanto, nada mais adequado, que apresentarmos a dimensão coletiva que constitui a construção dos afetos acadêmicos. Esse é, portanto, um texto que revela uma escolha, um escolher se aproximar das pessoas, produzir afetos e textos acadêmicos, e por fim, compartilhar.

Para iniciar, é preciso definir o que entendemos por afeto e escolhemos fazê-lo a partir de Espinosa. Para o autor, o afeto é uma afecção experimentada pelo corpo e pela   mente, entendendo aqui, que mente não é uma substância ou um receptáculo, mas atividade, pensamento. Desse modo, afeto é como o corpo e os pensamentos são alterados quando se relacionam com outros corpos. O afeto aumenta ou diminui a potência de existir do corpo.

A interdependência entre os corpos marca sua natureza modal e não substancial, ou seja, atesta sua definição como parte da Natureza, e não como um todo autossuficiente ou como uma entidade não sujeita a leis naturais. Nosso poder de pensar e agir, de compreender a nós mesmos e de agir como um modo finito de um todo complexo, pode ou não ser aumentado pela composição de suas forças com as de outros corpos humanos (tradução livre).[1]

Ao defender o afeto como afecção, Espinosa nos convida a pensar no corpo como nós, como coletivo. Um corpo-natureza, que tem como poder central afetar e ser afetado, aumentar/diminuir ou ter aumentada/diminuída sua potência quando no encontro com outros corpos. O corpo é assim movimento e repouso, produção e causa, sensibilidade e recepção. E ainda, que sendo corpo e mente codependentes, uma vez que o corpo é afetado, os pensamentos são alterados.[2]

É sobre a interdependência de corpos, sobre a constituição de sujeitos no coletivo, sobre afecção, sobre aumento da potência de agir, sobre percursos formativos que queremos discutir. Tem a educação tem aumentado nossa potência de pensar e agir? Tem a arte nos propiciado novos olhares sobre o corpo e feminismos que se movimentam em nossas salas de aula? Quais eco-sensibilidades emergem das produções de artistas mulheres?

 

Afetações 

Temos buscado a arte como recurso de afecção em percursos formativos. Aqui, apresentamos algumas dessas artes e as afetações produzidas em nossos corpos-professoras. As imagens que apresentamos, são recortes de filmes/documentários, de exposições e intervenções de artistas mulheres. Escolhemos essas imagens, pois, como defende Walter Benjamin[3] as imagens não têm síntese, elas são dialéticas, portanto, elas se interrompem enquanto imagens, mas seguem sem interrupção na produção de sentidos, na produção de novas perguntas.

Para nós, a produção de sentidos e de novas perguntas constituem um diálogo inconcluso.

“(…) a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa, então, participar do diálogo; interrogar, ouvir, responder, concordar”. [4]

Mikhail Bakhtin coloca que viver é estar em diálogo ininterrupto. “Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não poder nem dever terminar”. E nesse diálogo “o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos”.[5]

Essa compreensão permite pensar a esfera da sala de aula como produtora de diálogos, no qual as perguntas são propulsoras de outras perguntas que produzem sentido para o sujeito na experiência. E para que possamos levar para nossas salas de aula as percepções de mundo que a arte nos suscita, dialogamos com essas produções artísticas na intencionalidade de narrar o que nos mobiliza em resistências outras.

Nesse aspecto, pensar a sala de aula como espaço de diálogo inconcluso é pensar nessa singularidade as relações dialógicas com os estudantes e com as obras de arte. Para Bakhtin a investigação se torna interrogação e conversa, e isto é, diálogo. E “a obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva”.[6]

Ao inserirmos as obras de arte como um elo na cadeia de comunicação passamos a dimensionar a comunicação estética pois

o que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação.[7]

Para produzir esses diálogos, frente a comunicação estética, adotamos a pesquisa narrativa como metodologia de um processo de olhar para arte e por ela sermos afetadas, na singularidade de uma experiência inédita.

Pensando na metodologia de pesquisa narrativa com Bakhtin (2010), a responsabilidade/responsividade do ato se manifesta no fato de os(as) pesquisadores(as) deixarem de objetivar prioritariamente o corpo de dados para subjetivá-lo na singularidade das relações dialógicas com os sujeitos das pesquisas e suas produções. O conhecimento produzido, nessa situação, é um efeito, ainda que buscado, muitas vezes inesperado, colateral àqueles que provocaram a pesquisa.[8]

A pesquisa narrativa abarca uma proposição dialógica entre o pesquisador e o alvo do estudo que se constitui numa experiência única que é configurada nos textos de campo.[9] Para a composição dos textos de campo, “nossa forma de falar sobre o que é considerado como dados na pesquisa narrativa”[10] se constitui na formulação metodológica que se origina da proposição dialógica.

Para Jean Clandinin e Michael Connelly[11] “educadores estão interessados na aprendizagem e no ensino e no como esse processo ocorre; eles estão interessados em saber lidar com as vidas diferentes, os valores diferentes, as atitudes diferentes, as crenças”. E assim, a pesquisa narrativa compõe com essas vidas, as vidas como são vividas e o que elas trazem em si, e apresenta os fatos observados, pensados e narrados, considerando que ensino e aprendizagem acontecem em todo tempo e lugar.

A base metodológica da pesquisa narrativa é a criação dos “textos de campo” como registro da variedade de histórias, experiências de vida, documentos, fotos, conversas, entrevistas e outras percepções de mundo. Os limites de uma pesquisa narrativa se expandem e se contraem e são permeáveis interativamente pois “as vidas – pessoais, privadas e profissionais – dos pesquisadores têm fluxos através dos limites de um local de pesquisa”.[12]

A seguir apresentamos as narrativas dos textos de campo que fomos compondo a partir da fruição de cada imagem da produção artística, em diálogo inconcluso conosco e na ebulição daquilo que não tem fim em sala de aula no processo formativo (Fig. 1).

A artista estadunidense Jeanne Simmons (2018) performa em profusão tendo o corpo nu de uma modelo envolto em grama. Os fios do cabelo trançados às folhas em exposição à luz solar nos convocam a pensar processos fotossintéticos de manutenção da vida e a fragilidade das condições ambientais atuais no Antropoceno. O corpo, humano, em codependência vegetal. Uma convocação a nos envolvermos em questionamentos acerca dos modos contemporâneos de produção e consumo que não sustentam a existência de todos os seres. A morte de muitos para sustentar a vida de outros.

A ideia de que a natureza é um recurso a ser explorado ou uma força a ser subjulgada é mais abominável às mulheres do que aos homens, porque elas reconhecem que a natureza age nelas e por meio delas, e sentem de um modo intuitivo que a realização pessoal surge da ação junto com a natureza e não contra ela.[13]

O corpo da mulher em provocações sobre a escala planetária e as dimensões políticas e econômicas que alavancam a crise ecológica a dramáticos patamares de destruição. Envolver-se no irreparável, de forma solitária, em espera por mudanças de hábitos, de gente, de pensamento, de desejos. Será possível nos entrelaçarmos aos não-humanos em recomposição das práxis humanas no que concerne à produção de subjetividades em novas referências de lideranças em alteridade?[14]

 As ecofeministas materialistas tem visto as mulheres como as principais defensoras dos comuns porque estes constituem a base material para o trabalho reprodutivo: na sua perspectiva, defender o acesso aos comuns e a preservação de ambientes naturais e construídos (solo, água, florestas, pescas, mas também ar, paisagens e espaços urbanos) tem sido uma forma de resistência laboral contra a despossessão e condições degradantes para o trabalho reprodutivo.[15]

Ao envolver-se em camadas vegetais, Jeanne se entrelaça à paisagem e aos corpos de todas as mulheres que constituem a base do trabalho produtivo no mundo (Fig. 2 e 3).

Memórias Invisíveis é o nome do documentário, roteirizado e produzido por Mariana Zabot Pasqualotto (2001). Vamos aqui nomear Mariana como artista-pesquisadora-psicóloga entendendo que a sequência escolhida, diz respeito a como o trabalho dela nos afeta. Conhecemos Mariana em 2020 lendo a tese “Memórias da Loucura: arquivo, testemunho e arte”[16] e em 2021 assistimos o documentário fruto dessa pesquisa.

A escrita da pesquisadora já vem permeada pela delicadeza da artista. Mariana escreve com cuidado técnico e leveza, com precisão teórica e delicadeza, com método e muita potência criativa, sempre convidando o leitor a caminhar com ela pelo percurso que se inicia ainda na graduação e que a acompanha no mestrado e doutorado, buscando os rastros e restos do primeiro abrigo de alienados, fundado em 1923, na cidade de Joinville, construído nos fundos de um cemitério. O documentário, não seria diferente. É uma obra que agrega entrevistas com testemunhas que apresentam rastros e restos de uma narrativa sobre o abrigo. Não são entrevistados usuários, mas parentes, ou testemunhas oculares de outros tempos do prédio abrigo. A história contada por eles revela uma ausência de histórias e ao mesmo tempo apresenta resquícios dessas existências apagadas ou enterradas. Com poucas entrevistas, Mariana roteiriza a obra com a presença de atores que encenam a loucura e seu esquecimento no cemitério. São muitas as cenas que sensibilizam e chamam a atenção do expectador para a problemática: um abrigo de alienados que fora transformado em presídio político, depois moradia de policiais e seus familiares e por fim, com a depreciação do prédio e o crescimento da cidade, foi demolido e literalmente engolido pelo cemitério. O documentário trata de esquecimento, apagamento, memórias enterradas, experiencia humana empobrecida ou roubada, mas, produz fissuras, convida o expectador a produzir novos rastros, novos vestígios sobre a história, traz à tona memórias e histórias desse lugar e das pessoas que lá habitavam. A obra nos convoca a uma reflexão ética sobre as práticas de cuidado, uma ética do cuidado, que exige de nós uma reflexão não apenas sobre como cuidamos, mas sobre como produzimos uma vida empática, capaz de prevenir violências.

Os atores, os personagens, os sons, o cemitério como corpo-natureza tudo possibilita sentir a dor e o apagamento da vida de homens e mulheres do abrigo de alienados. Aqui, escolhemos dois fotogramas. O primeiro uma cena de uma das atrizes no cemitério. Uma cena com mãos contorcidas, com corpo sem rosto, que nos leva a pensar em corpos sem histórias, corpos passíveis de esquecimento. O segundo fotograma é uma imagem de um dos pacientes do abrigo, impressas em transparências e projetadas no cemitério. Uma cena que nos convida a pensar nesses corpos que tem rostos, que tem histórias, que apesar de parecerem transparentes ou invisíveis e de muitos deles terem sido enterrados ali, no cemitério sem identificação, precisavam desse resgate.

Mariana, ao compor o roteiro do documentário produz ciência pela investigação cautelosa das histórias das pessoas que habitavam o abrigo, e ao mesmo tempo, arte com fragmentos da vida perpassada pela invisibilidade. O documentário, por sua vez, é uma obra aberta de ciência-arte-vida que provoca fissuras, provoca tensões. Uma obra que nasce de um trabalho árduo de escavação e persistência, buscando desenterrar histórias. “Aqui jaz um abrigo de alienados” nos provoca Mariana, mas seu trabalho desenterra, resgata e faz resistir memórias desses sujeitos e suas histórias invisíveis. São cenas, imagens, acasos, coincidências, pequenos sinais, insignificâncias, que Mariana transforma em pesquisa e arte. Mariana é transformada em artista no processo de pesquisar e nos convoca à pesquisa a partir da sua arte.

Daniella Saraya é uma jovem artista israelense que tem trabalhado com design de joias e com práticas performáticas utilizando o próprio corpo. Na produção “New Skin” (2021)[17] Daniella nos apresenta uma nova pele. Uma pele vívida em tempos pandêmicos. Uma camada de látex que nos separa do exterior, que nos imprime novos modos de estar no mundo, em afastamentos de nós mesmos. Uma pele que resiste a novos medicamentos que se misturam às células sanguíneas em outros caminhos corpóreos. Uma pele que embrutece pelos momentos de dor petrificados em marcas na epiderme. Uma pele que tensiona as mortes covidianas em possibilidades futuras de políticas públicas em saúde, em cuidados sociais, em gente. Uma pele que queima as mazelas humanas em velas-manifesto pelas vidas que foram ceifadas por um vírus letal. Uma nova pele marcada pela vivência coletiva de uma tragédia sanitária.

Agonia. Não ouve um adeus. Somente partida. Vazio na alma sem flores nem vigília. Ciclo interrompido se construía? Pai, mãe, amigos. Planos sem despedidas. Silêncio no quarto. Lágrimas, saudade salgando a boca. Não houve um adeus. Partida lacrada. Passageira a vida. Ausência na sala. Cadeira vazia.[18]

A pandemia e o vazio das ausências nessa nova pele que fomos constituindo com toneladas de ácool gel e distanciamento das pessoas que amamos. Uma pele outra que traz nos poros as dores de milhões que padeceram sem oxigênio e agonizaram em leitos hospitalares.

As recentes convulsões do corpo planetário talvez estejam causando um colapso que obriga o organismo a parar, a desacelerar seus movimentos, a abandonar os lugares lotados e as agitadas negociações diárias.[19]

O vírus nos faz pensar que

além da interferência humana na biodiversidade e seus potenciais desdobramentos na saúde humana, enfrentamos um segundo desafio, as mudanças climáticas, fruto do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa. A junção dessas duas crises causa um prejuízo cíclico, em que a perda da biodiversidade intensifica as mudanças climáticas, o que por sua vez causará a extinção/diminuição de espécies biológicas e assim sucessivamente.[20]

E talvez somente consigamos romper com esses ciclos de tragédia anunciada se nos envolvermos em metamorfoses de peles. Em transformações profundas do sistema econômico mundial pois “o capital transfere o custo da produção tanto do trabalho como da natureza em terceiros – mulheres e sujeitos colonizados e racializados”.[21] Enquanto o trabalho que sustenta a vida estiver vinculado às mulheres, cujos corpos e capacidades produtivas tem sido apropriados por instituições capitalistas no sistema patriarcal dominante, nossas peles continuarão ressecadas pela crise pandêmica, climática, ambiental, social, econômica e política (Fig. 4 e 5).

Nele Azevedo (2005) é artista plástica que vive em São Paulo, apresentou suas obras em vários países e já recebeu inúmeros prêmios. Escolhemos apresentar, Monumento Mínimo, uma instalação que tem como característica principal se fazer intervenção efêmera em espaços públicos. O projeto é composto por várias estátuas de 20 cm de homens e mulheres, fundidas em gelo, que são levadas para regiões centrais de grandes cidades, e invadem esses espaços, sendo deixadas a ação do tempo.  Nele conta em diferentes entrevistas que o objetivo inicial do projeto era questionar os grandes monumentos, e assim o papel do herói que ganha destaque e se faz memória de uma população. Como escolhe espaços públicos importantes, a obra passa a homenagear as vítimas de grandes tragédias, os heróis invisíveis, as pessoas comuns. Aos poucos, a obra foi ganhando outros contornos, e passou a questionar também a situação climática, o aquecimento global. Seus heróis de gelo, passaram a evidenciar que somos todos corpos de uma mesma natureza, que homens, mulheres, animais, terra, fogo, água, ar, etc são interdependentes e que se afetam mutuamente, acionando assim a urgência no cuidado com a terra, para a manutenção das vidas.

Mas, a obra não tem uma explicação em si. Ela é apreciada e entendida pelo expectador. Para nós, Monumento Mínimo aciona reflexões sobre a transitoriedade da vida, sobre a urgência na experiencia cotidiana, uma vez que a vida é fluida, rápida, fugaz. A artista nos ajuda a lembrar que somos todos mortais, que apesar de vivermos como seres eternos, somos na verdade sujeitos do desparecimento, somos também passíveis de derretimentos. A obra proposta por Nele Azevedo, convoca durante toda a fabricação, instalação e exposição pessoas da comunidade para participarem, é uma obra de encontros, escultura de gelo produzida no calor dos afetos.

O que a obra não faz diretamente é nos convocar a pensar questões de gênero, não promove uma discussão sobre a assimetria da vida de homens e mulheres em seus processos de derretimento, de desaparecimento. Mas, arte é produção de sentidos, e não falar também nos permite pensar sobre estas questões, sobre como mulheres tem experienciado a vida em total desvantagem, apesar de sermos todos, produtos da mesma matéria (Fig. 6).

A arista visual e performer mineira Mariana Vilela (2022) pesquisa a ecologia das linhas, o que há entre os corpos. Humana em processo de vegetalização. Será possível ao sermos tomados por folhas, líquenes, musgos em nossa cabeça, orelhas, olhos, narinas e bocas pensarmos como as plantas? Respirar com elas em busca de uma oxigenação outra que nos leve a possibilitar brechas de existência nas catástrofes desse cotidiano? Mariana, ao impregnar-se de verde poderá alavancar parcerias multiespécies em conexões ecológicas inéditas? Poderemos sentir os processos energéticos de seres vegetais ao mimetizarmos paredes celulares e cloroplastos? Ao ser-planta-humano estaremos mais sensíveis às questões ambientais e à fragilidade ecossistêmica do planeta? Essa obra nos convoca a pensar a afirmação da vida, nas mais diversas condições de existência, ao nos depararmos em alteridade com outros seres, inclusive perante a morte. Paisagens mais que humanas. Produção de diálogos outros, não-verbais, não-corpóreos com organismos que desconhecemos.

Uma paisagem é sempre composta de um agregado de vidas que interagem em agrupamentos abertos, nos quais, na maior parte dos casos, temos os humanos dentre uma multiplicidade de seres. Explicitar essas relações exige que nos distanciemos dos binarismos, quer dizer, não basta apenas conceder agência aos não humanos; é preciso preencher a paisagem com toda vida que ela contém, retirando o humano de seu altar monárquico sobre uma natureza subjugada.[22]

Para Anna Tsing “se queremos saber algo sobre mudança ambiental, precisamos saber sobre os mundos sociais que outras espécies ajudam a construir”[23]. E para saber sobre esses mundos sociais talvez precisamos criar outros pensamentos que somente poderemos elaborar sendo outros. Em produção de cabeças-vegetais. Olhos-mosca. Orelhas-sonares-morcegos. Boca-anêmona. Braços-polvo. Pés-caracóis. Pele-serpentes (Fig. 7 e 8).

 Diva (2020) é o nome dado pela artista pernambucana Juliana Notari a intervenção de 33 metros de comprimento, feita no meio da Usina de Arte, terras da antiga Usina Santa Terezinha. A obra, apresentada em 2020, se inicia muito antes, já em 2003, quando Juliana encontra, em um espaço de venda de objetos usados, 22 espéculos de metal. O espéculo é um instrumento utilizado com o objetivo deixar orifícios como vagina, anus e narinas abertos para exames médicos e, como mulheres, podemos afirmar que é bastante invasivo. A arte apresentada naquele momento revelava então as memórias de invasão, os traumas de um corpo ferido por um objeto que supostamente tem a função de auxiliar no cuidado. Em 2008 e 2018 duas novas obras foram apresentadas, revelando ainda seu incomodo sobre como os corpos femininos são invadidos.

Juliana apresenta Diva, sua maior intervenção. Um buraco escultura de 33 metros de comprimento, que novamente visa revelar a violência histórica vivida por corpos femininos, mas que também revela a violência histórica vivida por terras exploradas pela monocultura. Novamente a arte aciona reflexões sobre corpos-natureza, nesse caso problematizando questões de gênero, a exploração do feminino e a luta contra o patriarcado, mas também nos faz pensar na exploração da terra, uma terra nesse caso, arrasada pela monocultura da cana de açúcar, da antiga Usina Santa Terezinha. A artista, trata a terra local como ferida, ferida aberta em múltiplas camadas. A exploração da terra significa a exploração da mão de obra do trabalhador escravo no tempo da escravidão e do trabalho escravo em relações de trabalho precárias, revela o desmatamento da terra, a expulsão dos povos originários. A Diva, de cor vermelha de sague, revela os estupros vividos pela terra e pelas mulheres.

É importante pensar nas reverberações da obra, que nesse caso, revelavam por parte de homens e mulheres uma preocupação com o corpo feminino, com o que se pode ou não revelar desse corpo. Esculpir uma vagina de concreto armado e resina, e publiciza-la choca mais as pessoas, que pensar em corpos femininos invadidos por diversos tipos de violência.

Em nós a arte de Juliana invade, corta, nos faz enxergar nossos corpos e as violências sofridas, os cacos produzidos pelo simples fato de termos nascido mulheres. A artista nos convoca ainda a pensar que muitas relações são como espéculos, que abrem, que marcam, que ferem, mas que expor a dor, pode nos ajudar a decidir sangrar ou não. As feridas/cacos não colam mais, mas a arte possibilita uma imersão, uma transformação e quem sabe uma emersão já em estado outro. É experiencia e memória.

 

Afetos em percursos formativos

Porque arte, afetos e percursos formativos?

Quando escolhemos mediar nossos encontros formativos com arte, nos interessa o processo de aprendizagem, os afetos que circulam e constituem os expectadores. A arte se atualiza em cada expectador e dessa atualização criamos outras histórias. Olhamos e somos olhados pela arte. A arte nos inventa, nos cria, nos faz inflamar e produzir sentidos. Acreditamos que o contato com a arte produz um sujeito com uma capacidade criativa e reflexiva maior, que por sua vez é capaz de produzir práticas mais criativas e criadoras, em contraposição a uma formação tarefeira que engessa o fazer.

Compreendemos que a educação na interação com a produção artística nos convoca a pensar no ato de ensinar tendo a centralidade no outro, que nos constituem enquanto professoras. Alicerçada em conceitos Bakhtinianos, Patrícia Corsino nos aponta que

a didática – como ensinamos o que ensinamos – é um ato responsivo, uma resposta responsável e não indiferente ao outro – sujeitos a quem o ensino se dirige. Mas, como o campo da didática é multidimensional, as respostas também são multidirecionadas. São muitos os outros escutados e respondidos no ato de ensinar e aprender. Ato ético, estético, epistemológico e político no qual a não indiferença é o que move e dá sentido ao passo dado por sujeitos situados, que firmam o seu compromisso com o outro – os vários outros – pelas respostas que dão do seu lugar exotópico, único e sem álibi.[24]

Assim, compreendemos que por meio da arte temos firmado um compromisso com o outro, a partir da sensibilidade que nos promove um deslocamento dialógico e a potencialidade de produção de sentidos.

Uma relação dialógica produtiva é aquela que cria exotopia, ou seja, quando, a partir do que percebo no que você vê em mim consigo ver-me de maneira diferenciada e não coincidente com a visão que eu tinha a meu próprio respeito antes, o que significará um acréscimo de visão e consciência (…). O processo exotópico se realiza justamente quando, munido desse olhar do outro, retorno a mim mesmo e efetivamente coloco em ação o excedente de visão que o outro me proporcionou, o que atualiza muito do que penso sobre o mundo.[25]

O conceito de exotopia em Bakhtin nos leva a compreender que a arte produzida por mulheres tem nos propiciado novos olhares sobre o corpo e feminismos, que nos movimentam em nossas salas de aula a produzir discursos que permeiam mundos distintos, oriundos do olhar do outro, de cada artista.

Formulamos a uma cultura alheia novas perguntas que ela mesma não se formulava. Buscamos nela uma resposta a perguntas nossas, e a cultura alheia nos responde, revelando-nos seus aspectos novos, suas profundidades novas de sentido.[26]

E na profusão desses aspectos novos temos promovido questionamentos sobre os percursos formativos que temos propiciado ao sermos, também, outras. Outras professoras em comunhão com essas mulheres artistas que nos convocam nessa cultura alheia.

O encontro não está dado, por isso não nos interessa interpretar a obra, mas perceber os afetos que constituem o expectador no encontro com a obra. Quais cenas, trechos, sons, personagens, cores, ângulos, perspectivas, detalhes reverberam no encontro com a arte. Quais as relações pessoais são possíveis identificar no encontro com a obra? Qual o território sociocultural, existencial, psicossocial que constitui e aciona afetos diversos no contato com a obra? Responder essas perguntas, pode nos ajudar a identificar quais recursos o expectador tem, para superar os desafios. A arte, mais do que mediação, ela produz conhecimento, produz regimes de visibilidades, de memória, de ficção e narração da vida.

 

Eco-sensibilidades

No início desse artigo nos perguntamos: Tem a educação tem aumentado nossa potência de pensar e agir? Não sabemos a resposta, se ela tem ou não aumentado, mas sabemos que é possível sim que ela aumente a potência de agir. Somos professoras, nosso trabalho é formar sujeitos-profissionais em diferentes campos de atuação. Em uma sociedade que exige rapidez na solução de problemas, formar técnicos é sempre mais fácil. Mas desejamos profissionais críticos e criativos, que se afetem nos processos, que experimentem encontros e que estes se tornem campo fértil para a ampliação do pensamento. A arte complexifica o processo. Não há nada dado na arte. Nada pronto. A arte tem acabamento e com isso, se mostra aberta a múltiplas produções de sentidos. Ela é polissêmica, não defende uma verdade ou uma única interpretação, não pretende desvelar o mundo, ela convida o expectador a produzir sentidos.

Vivenciar a sala de aula sabendo-nos atravessadas pela pandemia, nessa era de catástrofes que é o Antropoceno, nos faz desejar rupturas das dicotomias que imperam no nosso cotidiano. As eco-sensibilidades que emergem das produções de artistas mulheres nos ajudam a pensar os percursos formativos através do que acontece, pelo meio, nos atravessamentos da arte, nas afetações, em aberturas. Tangenciam as produções no campo do eco-feminismo pois propiciam diálogos para além das questões postas para corpo e gênero, elencando temáticas de enfrentamento ao capitalismo e ao Antropoceno.

 

Notas

[1] Juliana Merçon, “Parte de la Naturaleza: sobre el cuerpo como potencia compositiva”, Perspectiva, vol. 30, no 2, Florianópolis, 2012, pp. 473-496.

[2] Idem.

[3] Walter Benjamin, Obras escolhidas I, São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.

[4] Mikhail Mikhailovich Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo, Martins Fontes, 2003.

[5] Mikhail Mikhailovich Bakhtin, (1929/1963) Problemas da poética de Dostoiévski, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2011.

[6] Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Os gêneros do discurso, Tradução: Paulo Bezerra. 1a edição ed. São Paulo, Editora 34, 2016.

[7] Valentin Nikoláievitch Voloshinov; Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Discurso na vida e na arte: sobre a poética sociológica. Tradução para uso didático feita por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, [s.d.], p.1-25.

[8] Liana Arrais Serodio, Guilherme do Val Toledo Prado, “Escrita-evento na radicalidade da pesquisa narrativa”, Educação em Revista, vol. 33, no e150044, Belo Horizonte, 2017, pp.1-18.

[9] Maria Isabel da Cunha, “Conta-me agora!: as narrativas como alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino”, Revista da Faculdade de Educação, vol.23, no1-2, São Paulo, 1997, pp. 185-195.

[10] Jean Clandinin, Michael Connelly, Narrative Inquiry: experience and story in qualitative research, Uberlândia, EDUFU, 2011.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Andrew Heywood, Ideologias políticas: do feminismo ao multiculturalismo, São Paulo, Ática, 2010.

[14] Trecho inspirado no livro Félix Guattari, As três ecologias, Campinas, Papirus, 2012.

[15] Stefania Barca, “Forças de reprodução. O ecofeminismo socialista e a luta para desfazer o Antropoceno”, e-cadernos CES, no 34, Coimbra, 2020, p. 25-45.

[16] Mariana Pasqualotto, Memórias da Loucura: arquivo, testemunho e arte, Tese de doutorado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.

[17] Visível em https://vimeo.com/556637728

[18] Poema de Edimilton (Sf) Silva dos Santos, “Percepção Poética da Pandemia”.  https://salto.sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/11/Premio-Moutonnee-de-Poesia_miolo.pdf (acesso: 30/01/2023).

[19] Franco Berardi, Extremo: Crônicas da psicodeflação, São Paulo, UBU, 2020.

[20] Danielly Magalhães, Paulo Marchiori Buss, Luiz Augusto Cassanha Galvão, “As Íntimas Relações entre Pandemia, Biodiversidade e as Mudanças Climáticas” em: Paulo Marchiori Buss, Pedro Burger (org.), Diplomacia da saúde: respostas globais à pandemia, Rio de Janeiro, Fiocruz, 2021, p. 61-74.

[21] Stefania Barca, “Forças de reprodução. O ecofeminismo socialista e a luta para desfazer o Antropoceno”, e-cadernos CES, no 34, Coimbra, 2020, p. 25-45.

[22] Gabriel, Holliver, “Uma antropologia que dança: algumas notas sobre paisagens de conceitos em Anna Tsing”, Anuário Antropológico [Online], vol. 45, no 3, Brasília, 2020, p. 189-202.

[23] Anna Tsing, Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno, Brasília, IEB Mil Folhas, 2019.

[24] Patrícia Corsino, “Entre Ciência, Arte e Vida: a didática como ato responsivo”, Educação & Realidade, vol. 40, no 2, Porto Alegre, 2015, pp. 399-419.

[25] Caibar Pereira Magalhães Júnior, O conceito de exotopia em Bakhtin: uma análise de O filho eterno, de Cristovão Tezza, Dissertação Mestrado em Letras Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.

[26] Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, Estética da Criação Verbal, São Paulo, Martins Fontes, 1992.