Michelangelo em seu ateliê

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> autores

Renato Menezes Ramos

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Doutorando em Artes e Linguages pelo Centre d’Histoire et Théorie des Arts da École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris. Bolsista de doutorado pleno pela Capes. Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil, e graduado em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Renascimento. Dedica-se desde 2012 ao estudo da recepção do Renascimento italiano e, particularmente, de Michelangelo.

Recibido: 6 de julio de 2017

Aceptado: 13 de octubre de 2017





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> como citar este artículo

Renato Menezes Ramos; «Michelangelo em seu atelir». En Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 11 | Año 2017 en línea desde el 4 julio 2012.

> resumen

O artigo analisa a obra “Michelangelo em seu ateliê”, de Eugène Delacroix, a partir da leitura proposta por Charles de Tolnay em texto de mesmo título. Propõe-se aqui uma reflexão que supere alguns lugares comuns relativos tanto à formulação da imagem de Michelangelo quanto aos estereótipos sobre a representação dos artistas do Renascimento italiano no século XIX francês.

Palabras clave: Michelangelo, renascimento italiano, recepção, Delacroix, ateliê

> abstract

This article analyzes the work «Michelangelo in his studio» by Eugène Delacroix from the perspective of the interpretation proposed by Charles de Tolnay in the text of the same title. We propose a reflection that overcomes some common places regarding the formulation of the image of Michelangelo and the estereotypes about the representation of artists from the Italian Renaissance in the French 19th century.

Key Words: Michelangelo, Italian Renaissance, reception, Delacroix, studio

Michelangelo em seu ateliê

Charles de Tolnay foi um dos maiores especialistas em Michelangelo do século XX. Contemporâneo de outros grandes estudiosos, como Paola Barocchi, Enzo Noè Girardi, Alessandro Parronchi e Paolo Portoghesi, ele daria contribuições fundamentais para a compreensão da vida, da obra e da fortuna crítica do mestre florentino.* Em 1962, pouco tempo depois de publicar seu último volume do monumental ensaio sobre o artista, a Gazette des Beaux-Arts apresentaria um ensaio de Tolnay a respeito de uma obra sobre a qual muito pouco havia sido refletido. No ano anterior às recordações do centenário da morte de Delacroix, o pequeno e quase esquecido quadro intitulado “Michel-Ange dans son atelier” (Fig. 1), era iluminado pelas ideias do historiador húngaro.[1]

Como erudito que era, Tolnay dispunha de um amplo instrumental teórico para analisar o complexo fenômeno que reinventou profundamente a figura de Michelangelo na França ao longo do século XIX e, especialmente, o lugar que o artista italiano ocupava na concepção artística de Delacroix. Renunciando à exaustiva iconologia de Panofsky, ao formalismo longhiano e à literatura artística de Venturi, o historiador já havia apontado para uma postura flexível orientada pela imagem amparada pelo texto e sempre preparada para satisfazer as exigências filosóficas e artísticas na interpretação.[2] Depois de examinar as possíveis coordenadas do pintor francês para a composição da obra, o historiador evoca uma das versões para “Rafael e a Fornarina” (Fig. 2), de Ingres, na qual um homem de longa barba aparece ao fundo da composição, portando nas mãos algumas ferramentas de arquitetura. Reconhecendo Ingres como autêntico antípoda de Delacroix, analogamente a Rafael e Michelangelo, tema de suas respectivas obras, Tolnay não hesita em identificar aquele homem sombrio como o próprio Michelangelo, invejoso, observando a plenitude amorosa de seu “rival”, reforçando ainda mais a oposição entre a graça rafaelesca e a misteriosa solidão michelangiana. Se assim fosse, Ingres teria formulado uma imagem de Michelangelo que inverte radicalmente toda a sua fortuna crítica oitocentista, que o entende invariavelmente como vítima da inveja[3] e não o invejoso, como nesse momento conclui o especialista. Tolnay também abstrai o fato de que, para Ingres, representar Michelangelo como quer que fosse, constituía a quebra do mais absoluto rechaço que, durante toda a sua vida, julgou merecer o velho mestre florentino. Outras versões para a obra seriam realizadas, o sujeito misterioso ao fundo do cenário chegaria a desaparecer, mas outros exemplares nos asseguraram que sua figura retornaria a aparecer nos diversos experimentos sobre o tema.

Evidentemente, Tolnay, mesmo tendo visto pessoalmente a obra, fato que consolida a sua crença e estabiliza a ausência de documentos para sustentar tal hipótese, estava gravemente equivocado: trata-se de Giulio Romano, aluno e herdeiro de Rafael, cuja atividade como arquiteto é bem conhecida.[4] Ao menos desde Henri Delaborde,[5] seria identificada na personagem a imagem de Romano, e a coerência de Ingres, em verdade, jamais teria sido sacrificada. O equívoco de Tolnay parece resultar da convergência de dois fatores: 1) ele, intuitivamente, recorria à fórmula do “maldito espião” surpreendido no fundo do ateliê, semelhante ao que ocorre no retrato de Arnauldet por Carjat, em que Baudelaire aparece parcialmente revelado ao fundo (Figs. 3  y 2) ele seria apenas mais uma vítima de uma confusão que data do século XVI e, portanto, constitui um problema mais complexo, como se pode depreender do “Retrato de Michelangelo e Giulio Romano”, do Harvard Museum (Fig. 4). No tocante a fisionomia de Michelangelo, naquele mesmo ano, em 1962, Tolnay deslizava novamente ao detectar na face de um fauno em “Parnaso”, de Rafael, afresco executado entre 1509 e 1511, as feições rugosas do mestre florentino, usando anacronicamente como modelo o busto do artista realizado por Danielle da Volterra, supostamente a partir de sua máscara mortuária.[6]

O ensaio de Tolnay sobre a obra de Delacroix garantia também a sobrevivência da chave interpretativa lançada por Théophille Silvestre no primeiro catálogo comentado da Galerie Bruyas,[7] para quem a pintura corresponderia a uma espécie de autorrepresentação espiritual de Delacroix em Michelangelo, sugestão à qual diversos teóricos também posteriormente retornariam.[8] Espiritual, no sentido de que nada na face do mestre recordaria qualquer traço no rosto austero do pintor francês. Algumas forçosas tentativas de interpretação também identificariam o retorno do anti-herói Sardanapalus (Fig. 5), que se rende prostrado à loucura e ao desespero que invade seu reino em chamas, segundo a obra de Byron. A única voz dissonante viria de Lee Johnson, um dos mais importantes estudiosos de Delacroix, que reconheceria na imagem a derivação de um modelo constituído por Robert Fleury (Fig. 6).[9] Embora a hipótese de Johnson não seja de todo descartável, é preciso estar previamente consciente de que tanto Fleury quanto Delacroix inseriam-se na longa iconografia que identifica em Michelangelo a expressão de uma profunda melancolia e uma constante abnegação de seu trabalho, traços frequentes na representação do mestre entre os artistas franceses ao longo do século XIX.

Desde muito cedo, Delacroix manifestou seu interesse por Michelangelo e, em 1822, “Dante e Virgílio no Inferno”, sua primeira grande obra, daria provas de tamanha admiração. Em 1824 o pintor francês já sabia exatamente que o mestre florentino não exercia sobre si a função de um repertório de formas extasiantes, como um longo inventário de corpos vibrantes, de estiramentos musculares, ainda que fossem estes os aspectos pelos quais Delacroix estupefara-se diante da cópia do Juízo Final que ele nunca pode ver in loco. Isto ele declarou no ensaio publicado em 1837, na Revue des Deux-Mondes,[10] quando Xavier Sigalon enviara a Paris a obra que até hoje se encontra conservada na capela da École Nationale Supérieure des Beaux-Arts. Talvez o seu alvo em Michelangelo estivesse mais expressamente marcado já na biografia que Delacroix escreveu do mestre pouquíssimo tempo antes de pintar a tão conhecida “Liberdade guiando o povo”, em 1830.[11] O pintor francês demonstra sua admiração por um artista que serviu a sua pátria, mas era também permanentemente atacado por uma dúvida que afetava diretamente o destino de suas obras.[12] O que parecia interessá-lo em Michelangelo era justamente a sua capacidade de transpor toda a fúria demiúrgica dispensada no contato febril com a matéria por meio de sua melancolia e certeza desoladora da brevidade da vida.

“Procure a solidão. Se tua vida é regrada, tua saúde não sofrerá nada por tua retirada”.[13] – Estas foram as palavras do jovem Delacroix que antecediam uma livre tradução em prosa do soneto “Giunto è già ‘l corso della vita mia”,[14] acreditando que estivessem nestas palavras a síntese do memento mori michelangiano expresso ao fim da vida. O soneto, originalmente anexado em carta a Vasari nos anos de 1550,[15] seria retomado por Delacroix na biografia do mestre e, no mesmo ano, novamente traduzido por Sainte-Beuve,[16] poeta constantemente lido pelo pintor. De todo modo, claro estava que Delacroix atraía-se por Michelangelo menos por suas escolhas estéticas e mais como modelo de conduta.

Afirma-nos Condivi (1553), repetido posteriormente por Vasari (1568), que Michelangelo, por tão grande o juízo, jamais se contentava com o que quer que fizesse.[17] Por sua constante negação em liderar um ateliê, sua recusa em aceitar seguidores, suas obras tantas vezes abandonadas incompletas, seu conhecido mau gênio e seu gosto pela solidão, quis compreender a geração romântica que haveria no mestre um dom mágico de se comunicar com Deus e não com os homens.[18] Já Delacroix morreria no fatídico ano de 1863 como artista pertencente a um passado que, aparentemente, nada lhe devia: ele, analogamente, não havia deixado grandes discípulos, ou, ao menos, não havia composto uma escola, e sua arte já não mais podia acompanhar o que a revolução da pintura irrompida por Courbet e Manet requeria.

No necrológio de Delacroix, Alexandre Dumas encerra-o lamentando tê-lo visto expirar submerso em dívidas e em absoluta solidão, depois de convulsionar febril nos braços de sua fiel governanta, narrando assim o fim trágico de um autêntico artista romântico.[19] Decerto, Dumas contribui para a criação do mito Delacroix como artista frustrado, espreitado pelo fracasso e seduzido pela autodestruição. É assim que, curiosamente, ele tenta resolver o problema da amargura que acompanhou Delacroix até os últimos dias de sua existência por não ter conhecido a Itália e não ter, portanto, estudado exaustivamente os grandes mestres e os remanescentes da Antiguidade Clássica. Dumas localiza-o entre os artistas sem mestre, ou mestres apenas de si mesmo.[20]

Delacroix conhecia a Itália através de Stendhal, cuja Histoire de la Peinture en Italie (1817) e Promenade dans Rome (1829) ele leu atentamente e deixou registradas notas nas quais ele voltaria até o fim da vida. Certamente, foi a sua distância da Itália e sua capacidade de abstração do passado que lhe permitia um profundo sentido de liberdade histórica e lhe assegurava a certeza de que fazer arte e fazer história ligavam-se pela possibilidade de imaginação. O “Michelangelo em seu ateliê” é um elogio à invenção histórica. No mesmo espaço, o artista reúne duas obras que em tempo algum estiveram juntas: o Moisés, realizado em Roma, provavelmente entre 1508 e 1512 para o Sepulcro de Julio II, e a Madona Medici, executada em Florença, entre 1524 e 1533, para a Sacristia Nova. Ambas as obras conectam-se, contudo, de modo relativamente coerente: o Sepulcro ocupou quarenta dos quase noventa anos de Michelangelo, que não pode vê-lo realizado conforme seus projetos, constantemente alterados. A Madona, por sua parte, é figura inacabada e mal ajustada dentro do bloco marmóreo que a comprime. As fragilidades da erudição de Delacroix o permitiriam construir um discurso regular em torno de sua ideia sobre Michelangelo, que versava unicamente sobre o desejo agoniado de dar forma à ideia e sobre o sentimento de fracasso do artista consigo mesmo.

Em 1849, quando é feita a primeira menção à realização da obra em seu Journal, Delacroix é breve, e nada se refere sobre suas orientações para a nova composição.[21] Entre setembro daquele ano e maio do ano seguinte, sucedem-se mais duas notas,[22] apagadas pela esperança inútil de que algum comentário mais elaborado nos revele detalhes de sua concepção. Os dois únicos desenhos preparatórios para a obra que se conhece conservam-se no Fitzwilliam Museum, da Universidade de Cambridge. Em um deles, aparentemente a composição inicial, a inscrição “Le penseroso” nos indica a ideia central de Delacroix, que jamais seria abandonada. As figuras do fundo, entre as quais se reconhece o “Escravo Rebelde” do Louvre, ratificam aquilo que Delacroix complementa no rascunho: “os mármores gigantescos – a figura de Michelangelo relativamente pequena”.[23] Delacroix figura, ambiguamente, o momento em que o mestre florentino é atacado furiosamente por um golpe de inspiração, ao mesmo tempo em que apreende seu mergulho no angustiante sonho de pedra de um artista que acreditou conviver com colossos poéticos que lhe aguardam aprisionados no mármore. Já no segundo desenho, mais adiantado, o “Escravo Rebelde” permanece lá, mas o velho mestre florentino já abandonou seu cinzel, tal como na obra final, e sua atitude de êxtase melancólico já se consolidara.

Tolnay atribui o ato de lançar o cinzel ao chão, enfatizado por Delacroix, a uma passagem literária de Sainte-Beuve, de 1830.[24] Sua hipótese não é de todo inverossímil, mas é preciso recordar que para Stendhal, de quem Delacroix foi atento leitor, como mencionado anteriormente, Michelangelo, durante o conturbado retorno a Florença, havia ficado cerca de nove anos “sem nada fazer”, segundo suas próprias palavras.[25] Assim sendo, esta pintura passaria a corresponder, doravante, a uma resposta de Delacroix a seu tão admirado escritor. Nestes anos de suposto abandono absoluto às atividades mecanicae, Michelangelo, para o pintor francês, teria se voltado exclusivamente às atividades do intelecto.[26] Nada, portanto, nesta pathosformel melancólica resgatada em Michelangelo por Delacroix, diferir-se-ia da situação reflexiva e perturbada de “Tasso na prisão dos loucos” (Fig. 7).[27] Basta pensar que toda a desordem de materiais e instrumentos que Delacroix esboça no primeiro estudo para a obra é excluída em benefício do estudo atento da banqueta sobre a qual repousa um livro e onde um dos braços de Michelangelo se apoia dissolvendo-se em fluidas pinceladas.

Aliás, não se pode negar a possibilidade de que essa banqueta seja, em verdade, um torno,[28] observação nunca feita anteriormente. A base daquela estrutura indica algo mais do que uma simples banqueta teria: seria um aparato giratório para que seu plano superior girasse, facilitando, assim, o trabalho manual sobre a cerâmica? Se assim for, Delacroix teria operado com isso talvez a sua maior invenção histórica, ao tocar em um dos problemas mais caros à concepção artística de Michelangelo. O debate em torno do paragone, isto é, a disputa entre as artes, ganhara novo capítulo em 1547, quando Benedetto Varchi solicitara a um grupo de artistas que então gravitavam na órbita da Academia Florentina, além, é claro, de Michelangelo, seus respectivos pareceres a respeito desta querela.[29] É inquestionável o papel que o mestre florentino desempenhará na revisão do estatuto da escultura que, em sua concepção, repetida depois por outros artistas, sairá sempre vitoriosa desta disputa.[30] De todo modo, deste debate as artes decorativas estão em absoluto excluídas. Um dos esforços feitos por Benvenuto Cellini é de se afirmar como artista, aquele cuja ideia vem junto (ou antes) do trabalho manual, e não como artesão, aquele a quem se pressupõe o contrário (ou, simplesmente, a ausência do espaço da ideia). A arte francesa do século XVI, distante dos debates acalorados do universo humanista italiano, possuía grande afinidade com as artes decorativas, especialmente a cerâmica. Bastaria aqui evocar o sucesso de Bernard de Palissy ou as faianças de Masseot Abaquesne. Muito mais tarde, a Manufacture Nationale de Sèvres inserirá definitivamente o gosto pela cerâmica decorativa nos ambientes mais sofisticados do Segundo Império. O grande passo dado do século XVI ao XIX, com o qual a França contribui imensamente, é a aproximação entre o trabalho artistico e a produção industrial, sublimando os limites então emergentes entre arte e artesanato, entre o erudito e o decorativo.[31] Nada impedirá, doravante, que o artista trabalhe a cerâmica sem que isto acarrete no empobrecimento de sua obra, ou na duvida sobre sobre o mérito de sua fama. Entretanto, a invenção histórica operada por Delacroix reside não na possivel inserção do torno de oleiro em um atelier de escultor, mas na identificação de Michelangelo com um universo do qual sempre esteve distante.

Essa banqueta, ou torno, se presta, contudo, a uma função morfológica outra que desconecta a obra de um possível debate a respeito da dimensão intelectual da arte ou a seus limites institucionais para voltar-se mais uma vez, ao estatuto do artista. É neste objeto que Michelangelo apoia seu braço, filiando-se, como dito, ao tipo do artista filósofo (pensieroso, como ele próprio anota em seu papel), consolidado nos séculos XV e XVI, sobretudo pela figura de Leonardo ainda vivíssima na França, à qual Delacroix aspirará fortemente. O entendimento de Michelangelo como artista filósofo se deu, ao longo de sua recepção, por múltiplas vias. Delacroix, por sua parte, antes mesmo da realização da pequena obra em questão, havia já se defrontado com este problema. Em 1838, ao fim dos trabalhos de decoração do Salon du Roi na Camara dos Deputados, Adolphe Thiers delegou a Delacroix a missão de decorar os penachos das cúpulas e os dois semicírculos que compunham o teto da biblioteca do edifício. O pintor concebeu, então, cinco grupos de quatro hexágonos, cada um dos conjuntos girando em torno de um eixo temático diferente. Hesitante entre a Filosofia e as Artes, Delacroix termina por decorar a quarta cúpula com temas ligados à primeira esfera de saber. Em um dos penachos, o pintor francês sintetiza as narrativas a respeito da fulminação de Sócrates não por uma visão, mas pela aguda “percepção de uma voz ou inteligência de uma palavra que o atacava misteriosamente”.[32] Neste processo de decisão, um estudo em pastel descartado e rapidamente adquirido por Alfred Bruyas para compor sua coleção pessoal, revela que Sócrates conservava em si a mesma forma do projeto anterior, dedicado às artes (Figs. 8.1 y 8.2). Tratava-se de Michelangelo, de cuja figura ele eliminara apenas o martelo à mão e um fragmento de escultura em mármore aos pés. Delacroix nos faz recordar dos numerosos comentários a respeito da disposição melancólica não só de Sócrates e de Michelangelo, mas da fisiologia dos gênios, em geral, no organismo dos quais circulam os fluidos ativadores desta violenta oscilação entre a prostração e a catarse. Quis o destino que Delacroix não fosse um bom fisionomista e, por isso, tenha livrado de Sócrates qualquer traço fisionômico que o garanta como tal. Se ele o fosse, é possível pensar que as consequências desta fusão chegassem a uma gravidade ainda maior, ao nível de uma “poética da semelhança”, não só entre Michelangelo e Sócrates, mas numa tentativa de criação deste binômio como seu próprio alter-ego.

Recordemos que em 1850 o pintor apresenta a primeira de suas sete candidaturas consecutivas ao Institut de France, e, portanto, não espantaria que ele passasse a transitar de maneira ainda mais explícita pelo terreno da história e das teorias da arte, do qual nunca esteve efetivamente distante. Em 1857, pouco tempo antes de finalmente conquistar sua vaga no Institut, Delacroix daria inicio ao seu grande projeto do Dictionnaire de Beaux-Arts, em cujo fim sua morte não o permitiria chegar. Este projeto coroava justamente as suas pretensões enquanto pintor-intelectual, artista-teórico, nos moldes de universalismo humanista redivivo, ao qual ele sempre aspirou.

A virada do século XV para o XVI, como se subentende daquilo que até agora foi examinado, marca um período sensibilíssimo no tocante à redefinição do estatuto do artista, no qual as relações sociais entre mestre, aprendiz e mecenato marcaram-se como fator fundamental para tal fenômeno.[33] Contrariamente a este movimento, a solidão de Michelangelo seria providencial para a cristalização, em longa duração, da ideia de que “a reclusão é uma condição indispensável para a realização de obras grandiosas”.[34] O século XIX, por sua parte, operaria de modo a entender a exceção como regra, e casos excepcionais, como o de Michelangelo, corresponderiam a oportunidades infalíveis para a construção do discurso segundo o qual a incompreensão do artista garante a certeza de sua vitória moral, que não lhe permite submeter-se à bêtise burguesa. O trabalho solitário torna-se, não apenas um componente de seu caráter excêntrico, como assegura a sua superioridade como um criador,[35] e é também, a um só tempo, resultado inevitável de seu fracasso. O silêncio angustiado de Michelangelo é, para Delacroix, o reconhecimento da possibilidade artística de se erguer em um universo construído por insatisfações.

Ao discurso da insatisfação e à declaração da potência poética da solidão, acrescenta-se a experiência da cor. Tudo na pequena obra é composto por massas cromáticas vibrantes, todos os limites se dissolvem e tudo se excita em agonia paralisante, naquele vazio acalorado e preenchido por grandes volumes de pedra, no meio dos quais Michelangelo se ajeita. Delacroix, debruçado na imagem de um grande mestre, exercerá sobre a geração imediatamente posterior uma lição para sempre tácita. É possível chegar à cor sobrepondo tons e não apenas misturando-os previamente. A razão pela qual Delacroix seria rapidamente rechaçado enquanto referencial artistico está também clara nesta obra. A observação da natureza poderia ser, para ele, facilmente sacrificada em favor da imaginação, movida pelas agitações do espírito. É por isso que tudo o que resta de linhas na obra, se esvai em cor e se desfaz como desenho de memória.

Baudelaire nos revela que ainda muito jovem pode conhecer o ateliê de Delacroix. “A despeito do rigoroso clima francês” – nota o escritor – “reinava um clima equatorial”.[36] A quentura de seu ateliê também levaria Théophile Silvestre[37] a compreender nisto alguma medida de seu espírito ardente. Nada de excessos, nada de objetos inúteis, diria ainda Baudelaire, que reconheceu ver no ateliê de seu artista protegido algo de seus métodos de trabalho. O ateliê que Delacroix ainda ocupava na época da execução da obra em questão[38] estendia-se amplamente à entrada direta de luz e lá se acumulavam tão somente quadros e cavaletes, como na imagem publicada em L’Illustration, em 1852 (Fig. 9). Mas o ateliê ideal de Delacroix não era um espaço de convivência, como nos sugere a gravura, mas um local de reclusão, de vazio ocupado unicamente por fontes e resultados de ideias. É nesse vazio onde se constrói, a partir da figura de Michelangelo, uma alegoria da angústia mobilizadora da criação e, por consequência, da própria capacidade de estar consciente das limitações e dos paradoxos impostos pela vida, ou, em uma expressão mais sintética, da capacidade humana de exercer a sua humanidade.

O “Michelangelo em seu atelier” seria vendido em 1852 para um tal Thomas[39] e, em 1853 já constava entre as obras de Alfred Bruyas, de quem, naquele ano, Delacroix realizaria um expressivo retrato.[40] Em 1876 a obra seria transferida para a coleção do Musée Fabre, em Montpellier, constituindo o primeiro conjunto de obras de arte contemporânea da instituição.[41] Este quadro jamais constaria entre as grandes obras do artista francês, talvez porque, como apenas Tolnay reconheceria, o que o redime da pena de seu erro, ela corresponderia a uma espécie de epitáfio da relação que Delacroix construíra idealmente com Michelangelo. Mas este assunto configura outro problema e isto demandaria outro ensaio.

 

 

 

 

 

Notas

* A primeira versão deste artigo foi apresentada no IV Colóquio de estudos sobre arte brasileira do século XIX – O ateliê do artista, em 2015. Trata-se também do desdobramento de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado defendida neste mesmo ano na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), intitulada “Michelangelo como modelo de artista moderno (França, 1830-1876)”, cuja pesquisa, sob orientação de Luiz Marques, foi realizada com o apoio financeiro da Fapesp.

[1] Charles de Tolnay, “Michel-Ange dans son atelier par Delacroix”, Gazette des Beaux-Arts, Paris, 1962, pp. 43-53.

[2] Hans Belting, O fim da historia da arte. Uma revisão dez anos depois, São Paulo, Cosac Naify, 2006 [1983], p. 221.

[3] O topos da superioridade de Michelangelo ativadora da inveja de quem assim o reconhecia é moto para alguns episódios entre os quais destacam-se a agressão de Michelangelo por Torrigiano, que lhe fraturou o nariz ainda na adolescência e, mais tarde, conforme suas narrativas biográficas, as artimanhas movidas por Bramante para favorecer seu favorito Rafael tornar-se-iam grande demonstração desta questão.

[4] Cf. Francis Haskell, “Les maîtres anciens au XIXe siècle”, em De l’art et du goût, jadis et naguère, Paris, Gallimard, 1989 [1987], p. 211, nota 1. – Haskell já havia detectado o erro, embora não explicite o texto de Tolnay e tampouco avance nos problemas teórico-conceituais decorrentes do engano.

[5] Henri Delaborde, Ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine, d’après les notes manuscrites et les lettres du maître, Paris, Henri Plon, 1870, pp. 279-280.

[6] Charles de Tolnay, “Un ritratto sconosciuto di Michelangelo dipinto da Raffaelo” em Josef Adolf Eisenwerth (Publ.) Festschrift Friedrich Gerke, Baden-Baden, Holle Verlag, 1962, p. 167.

[7] La Galerie Bruyas [Catálogo], Musée Fabre, Montpellier, 1876, pp. 296-306.

[8] Entre os quais se destacam: Marc Gotlieb, “Creation and death in the romantic studio” em Michel Cole and Mary Pardo (eds.), Inventions of the studio, Renaissance to Romanticism, North Carolina, University North Carolina Press, 2005, pp. 147-183; Jean Claire (Dir.) Mélancolie, genie et folie en Occident, [catálogo], Paris, Gallimard, 2014 [2005], p. 359.

[9] Lee Johnson, The paintings of Eugène Delacroix: A critical catalogue, 1832-1863, Volume III, Oxford, Clarendon Press, 1986, pp. 126-128.

[10] Cf. Eugène Delacroix, “Sur le Jugement Dernier”, Revue des Deux Mondes, Paris, Tome XI, Numéro juillet/août, 1837, pp. 337-344.

[11] A célebre carta em que Delacroix comunica a seu irmão a criação de um “tema moderno” referindo-se a “Liberdade” data de 12 de outubro de 1830.

[12] Eugène Delacroix, “Michel-Ange”, Revue de Paris, Tome XV, Juillet, 1830, pp. 41-58; Tome XVI, Août, 1830, pp. 164-178.

[13] Eugène Delacroix, Journal. Tome I, 1822-1852, Paris, Librairie Plon, 1950, pp. 42.

[14] Michelangelo Buonarroti, Soneto 285 em Rime. Enzo Noé Girardi (org.). Milano, Rizzoli, 1960.

[15] Luiz Marques dá todas as informações necessárias sobre este soneto. Cf. Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo Buonarroti, São Paulo, Campinas, Unicamp, 2011 [1568], nota 628, p. 615.

[16] Charles Augustin Sainte-Beuve, Les consolations, Bruxelles, Hauman Cattoir, 1837 [1830], p 93.

[17] Giorgio Vasari, op. cit. 2011, p. 147.

[18] G. C. Argan, “O Michelangelismo”, em Clássico Anticlássico, São Paulo, Companhia das Letras, 1999 [1966], p. 336.

[19] Cf. Alexandre Dumas, Delacroix, Paris, Merure de France, 1996 [1864].

[20] Ibídem, p. 51.

[21] Delacroix, Journal…op.cit., p. 384 –Primeira menção em 16 de setembro de 1849. Entre setembro daquele ano e maio do ano seguinte, sucedem-se mais duas notas: Idem, p. 444; 446– 18 e 23 de maio de 1850, respectivamente.

[22] Ibídem, pp. 444; 446.

[23] Imagens disponíveis em: http://webapps.fitzmuseum.cam.ac.uk/explorer/index.php?qu=michelangelo delacroix&oid=6308 Consultado em 14 de maio de 2015.

[24] Tolnay, “Michel-Ange dans son…” op.cit., pp. 48. Sobre Sainte-Beuve, cf. nota 14. Tolnay se refere aos versos do poema que segue sua tradução para o soneto: “É Michelangelo cego e lançando o cinzel” (Tradução nossa).

[25] Stendhal, Histoire de la peinture en Italie. Autour de Michel-Ange, Paris, Le Seuil, 1994 [1817], pp. 230-233. – Sobre isso, o mais próximo do dito por Vasari seria “(…) retornara a Florença, onde perdia tempo em afazeres diversos (…)”.Vasari, op.cit., p. 111.

[26] É preciso lembrar que Delacroix era grande admirador das Rime de Michelangelo.

[27] A loucura patológica de Torquato Tasso, por outro lado, aproxima-se do modo como Michelangelo manifestou diversas vezes entender a sua própria melancolia (pazzia), cuja demonstração mais célebre esteja talvez na carta de maio de 1525, na qual ele diz: “(…) abandonei um pouco a minha melancolia – ou, melhor dito, a minha loucura”. – Cf. Michelangelo Buonarroti, Cartas Escolhidas, Campinas, Unicamp, 2009, p. 63.

[28] Agradeço a Fernanda Pitta, por ter chamado a minha atenção para esta questão.

[29] As duas conferências realizadas por Benedetto Varchi em Santa Maria Novella, em Florença, sob os auspicios da Accademia Fiorentina, reacende o longo e acalorado debate a respeito da disputa entre as artes, conhecido como paragone.  Michelangelo tem nesta seara lugar fundamental, em primeiro lugar devido ao reconhecimento e reputação de que gozava a esta altura e, em segundo lugar, evido ao fato de que no primeiro destes discursos de Varchi ele realiza uma longa exegese de dois sonetos do artista. Uma longa bibliografia foi dedicada exclusivamente ao tema, entre as quais destacaria: Lauriane Fallay d’Este, Le paragone, le parallèle des arts, Laurianne Fallay d’Este et Nathalie Bauer (trads.),Paris, Klincksieck, 1992. A compilação de textos que compõe tal livro é oriunda majoritariamente de: Scritti d’arti nel Cinquecento. A cura di Paola Barocchi. Tomo 1, Milano, Napoli, Riccardo Ricciardini, Torino, Einaudi, 1978.

[30] Para a versão traduzida da referida carta de Michelagelo, ver: Michelangelo Buonarroti, op. cit., pp. 127-128.

[31] A crise por que passa a Ecole de Beaux-Arts, em larga medida devido a seus excessos de normatizações e suas reformas regulamentares, é paralela, de um lado, ao sucesso do surgimento de escolas que instaraurarão praticas artisticas distintas daquelas do ambiente artistico acadêmico, e, de outro, à emergência de instituições que estabelecerão outra relação entre o universo das ditas “belas artes” com aquele das artes “menores” ou “utilitarias”. Há a esse respeito uma ampla bibliogafia, ainda que a obra de Pevsner continue sendo uma referência incontornavel para tratar deste assunto. Cf.: Nicolaus Pevsner, Origens da arquitetura moderna e do design, São Paulo, Martins Fontes, 2001 [1968], pp. 9-42. Ver também: Pierre Vaisse, “A estética do século XIX: da lenda às hipóteses, 19&20”, Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan. 2010.

Documento electrónico: http://www.dezenovevinte.net/ha/vaisse.htm, consultado em 24 de outubro de 2017.

[32] Plutarque, Le démon de Socrate, Paris, Klinckisieck, 1970, p 154.

[33] Cf. André Chastel, “O artista” em Eugenio Garin (Dir.) O homem renascentista (1988), Lisboa, Presença, 1991, pp. 171-176.

[34] Maria Berbara, “‘Io non fu’ mai pictore né scultore come chi ne fa boctega’: Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI”, em Maria Berbara (Org.), Renascimento Italiano: ensaios e traduções, Rio de Janeiro, Trarepa, 2010, p. 129.

[35] Ernst Kris e Otto Kurz, Lenda, mito e magia na imagem do artista: uma experiência histórica, Lisboa, Presença, 1988 [1979], p. 90.

[36] Charles Baudelaire, “Vida e obra de Eugène Delacroix”, em Escritos sobre arte, São Paulo, Hedra, 2008 [1864].

[37] Cf. Phillippe Junod, « L’atelier comme autoportrait », em Chemins de traverse: essais sur l’histoire des arts, Paris, Infolio, 2007, pp. 294-295.

[38] Delacroix alugou um ateliê na rue Notre-Dame-de-Lorette de 1845 até 1857, quando ele o abandona para ocupar o ateliê da residência que adquire naquele ano.

[39] Para as notas de venda de quadros anexados aos diario de 1852 de Delacroix, ver: Eugène Delacroix, Journal. Tome II, 1850 – 1854, Paris, Librairie Plon, 1950, p. 132.

[40] Trata-se do retrato que se somaria a tantos outros do gênero, hoje todos na coleção do Musée Fabre, em Montpellier, através dos quais é possivel retraçar a propria biografia do rico colecionador, de tão numerosos.

[41] Sobre a coleção da Galerie Bruyas, vide supra, nota 8.