Crítica Institucional à brasileira: a relação entre artistas e instituições nos idos dos anos 1960/1970 no Brasil – o caso Fiat Lux

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> autores

Raíza Ribeiro Cavalcanti

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Jornalista, cientista social e mestre em sociologia. É doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisa artes visuais desde 2007, tendo atuado em pesquisa para curadores e na direção de museus no Recife. Atualmente vive em São Paulo e participa de um grupo de estudos em história da arte e arte e política, coordenado pela professora Dária Jaremtchuk na Escola de Artes e Comunicações da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Também trabalha como supervisora do setor educativo da 31ª Bienal de São Paulo. Investiga relações entre arte e instituições. Publicou recentemente artigo sobre o artista Lourival Cuquinha e sua prática de Crítica Institucional e também um trabalho sobre o artista Daniel Santiago.

Recibido el 15 de julio de 2014

Aceptado el 5 de agosto de 2014





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> como citar este artículo

Raíza Ribeiro Cavalcanti; «Crítica Institucional à brasileira: a relação entre artistas e instituições nos idos dos anos 1960/1970 no Brasil – o caso Fiat Lux». En Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N° 5 | Año 2014 en línea desde el 4 julio 2012.

> resumen

Quando se fala em Crítica Institucional, é quase instantânea a referência que nos vem à mente: Hans Haacke, Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Michel Asher. Artistas emergidos em meados dos anos 1960 ficaram conhecidos na posteridade como primeira geração da Crítica Institucional, após o crítico Benjamin Buchloch definir os trabalhos realizados por eles nessa categoria. Porém, pensando no mesmo período de produção artística no Brasil, seria possível dizer que aqui também houve a emergência de práticas artísticas as quais pudessem ser lidas dentro do conceito de Crítica Institucional? Para pensar essa questão, me baseio no trabalho O Sermão da Montanha – Fiat Lux, do artista Cildo Meireles. A partir dele, tento observar como as questões da Crítica Institucional aparecem no Brasil, considerando os distintos contextos sociais e políticos da América Latina e dos Estados Unidos e da Europa (estes últimos, lugares de onde emergiram esse conceito e cujos artistas se tornaram cânones dessa prática).

Palabras clave: Crítica Institucional, arte e política, Cildo Meireles

> abstract

When speaking of Institutional Critique, is almost instantaneous the reference that comes to mind: Hans Haacke, Marcel Broodthaers, Daniel Buren and Michael Asher. These artists, emerged in the mid 1960s, became known as the first generation of Institutional Critique, after Benjamin Buchloch defined their critical work in that category. However, thinking about the same period of artistic production in Brazil, could it be said that there was also the emergence of artistic practices which could be read within the concept of Institutional Critique? To think about this question, I focus this paper on O Sermão da Montanha – Fiat Lux from the artist Cildo Meireles. I will try to observe in this work how the issues of Institutional Critique appear in Brazil, considering the different social and political contexts of Latin America, the United States and Europe (the latter, places where this concept emerged and whose artists became canons of this practice).

Key Words: Institutional Critique, art and politics, Cildo Meireles

Crítica Institucional à brasileira: a relação entre artistas e instituições nos idos dos anos 1960/1970 no Brasil – o caso Fiat Lux

Quando se fala em Crítica Institucional, é quase instantânea a referência que nos vem à mente: Hans Haacke, Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Michel Asher. Artistas emergidos em meados dos anos 1960 ficaram conhecidos na posteridade como primeira geração da Crítica Institucional, após o crítico Benjamin Buchloch definir os trabalhos realizados por eles nessa categoria.

Porém, pensando no mesmo período de produção artística no Brasil, seria possível dizer que aqui também houve a emergência de práticas artísticas as quais pudessem ser lidas dentro do conceito de Crítica Institucional? Para pensar essa questão é preciso, em primeiro lugar, entender que, antes de ser um movimento ou algo que o valha, a Crítica Institucional é uma prática artística emergida no interior da expansão e ruptura provocadas pelo conceitualismo que surgia em meados dos anos 1960. Visto que as práticas artísticas conceituais ganharam força e expansão na produção brasileira dessa época, não seria de se espantar que os questionamentos institucionais também fizessem parte do universo de problematizações dos artistas naquele momento.

Sendo assim, parece pertinente fazer-se as seguintes perguntas: que questionamentos institucionais eram feitos pelos artistas brasileiros? Num contexto de ditadura e violência, por um lado e, por outro, instituições artísticas recém-criadas e mercado de arte não tão consolidado, o que movia uma prática de intervenção crítica no interior do campo aqui? E que trabalhos artísticos resultavam dessas intervenções?

A partir do trabalho de um dos artistas referência no período dos anos 1960/1970, Cildo Meireles, tratarei de buscar, brevemente, entender essas questões. A ideia é pensar em como é possível definir práticas semelhantes ao que ficou definido como Crítica Institucional, porém dentro de um contexto político-artístico específico, o que impõe a redefinição desse conceito para uma situação brasileira.

Sendo assim, é importante deixar claro desde já que, além de entender a prática da Crítica Institucional como emergida de um contexto de conceitualismo, também estou considerando que esse conceitualismo possuiu caráter, estratégias e soluções estéticas muito distintos em suas versões europeias, anglo-saxônicas e latino-americanas. Desse modo, a partir do trabalho O Sermão da Montanha: Fiat Lux, de Cildo Meireles, pretenderei esboçar uma breve análise de como as relações entre artistas e instituição nesse período podem ser lidas através do conceito de Crítica Institucional, mas de maneira particular. O objetivo será fazer uma breve comparação entre algumas das práticas mais conhecidas dos artistas europeus que levaram à definição desse conceito com esse trabalho, pontuando diferenças e particularidades da prática brasileira.

Arte Conceitual ou Conceitualismo?

Antes de iniciar a análise das práticas de Crítica Institucional nos anos 1970 no Brasil, creio ser importante uma breve apresentação sobre o debate realizado a respeito dos termos Arte Conceitual e Conceitualismo. Entender as diferenças entre essas duas palavras me parece fundamental para realizar uma análise de como práticas denominadas como Crítica Institucional podem ser identificadas nas obras de artistas brasileiros.

Segundo Artur Freitas[1] tanto o termo Arte Conceitual quanto conceitualismo se referem a um mesmo fenômeno internacional de retomada e reelaboração de práticas iniciadas pelo dadaísmo, mais especificamente Marcel Duchamp, que levaram à desmaterialização do objeto artístico. Desse modo, para o autor, a arte conceitual ou conceitualismo nomeiam uma série de situações estéticas, institucionais e políticas extremas a que as neovanguardas chegaram entre os anos aproximados de 1966 e 1973, sob o impacto de releituras de Marcel Duchamp que tornaram a década de 1960 predispostos à ideia de uma arte intelectualizada e para-visual (nas palavras do historiador Benjamin Buchloh).[2]

Apesar das ocorrências históricas anteriores (a exemplo do grupo Fluxus que havia falado em arte de conceito nos idos de 1961), Freitas sugere que foi Sol Lewitt quem deu os contornos necessários para fazer surgir a ideia de arte conceitual, como prática artística em que a ideia é o cerne da obra. Suas proposições começaram a sobrepor-se aos objetos mesmos, assumindo um lugar de destaque no processo de produção do trabalho. Para Freitas, foi com Lewitt que a noção de projeto começou a tomar forma, como algo além do resultado final, válido por si mesmo enquanto proposta de ação. Porém, diz o autor, foi com Joseph Kosuth que a ideia de Arte Conceitual ganhou notoriedade internacional, além de uma formulação teórica mais rígida e formal.

O que Kosuth fez, segundo Freitas, foi formular um paradigma de Arte Conceitual em que essa se encerrava em uma espécie de tautologia da arte-pela-arte que, na tentativa de fazer a crítica ao modelo greenbergiano, acabava por reproduzi-lo, mas desde outro ponto, o do conceito e da metalinguagem como objetivo da prática artística em lugar da planaridade da forma. Para Kosuth, como bem lembra Freitas, a Arte Conceitual deveria basear-se em proposições analíticas, tautológicas, independentes de informações empíricas e, por isso mesmo, válidas em si mesmas. Essas teses se tornaram, então, paradigmáticas do debate sobre Arte Conceitual na Inglaterra e Estados Unidos.

Partindo dessa reflexão inicial sobre o surgimento da Arte Conceitual nos contextos estadunidense e europeu, percebe-se que esta estava diretamente relacionada ainda a uma discussão modernista do estatuto da arte. Segundo ainda Artur Freitas, a arte como linguagem, nesse momento inicial, não tinha compromissos com sentidos exteriores ao do próprio mundo da estética e da arte. Era ainda uma reflexão sobre si mesma, seus objetos, formas e modos de produção. Duchamp foi aqui evocado não na dimensão objetual de suas ações iconoclastas, mas justamente pelos deslocamentos conceituais que produziu através dessas ações. O que voltou do readymade nesse momento foi o conceito, não objeto em si.

Porém, essa emergência da Arte Conceitual coincidiu com processos distintos em outras partes do mundo que, não necessariamente, foram replicações ou reproduções desse modelo anglo-americano. No Brasil, por exemplo, a década de 1960 foi um período de grande experimentação, em várias partes do país. Enquanto no Rio, o grupo neoconcretista começava a expandir a pesquisa concreta para o ambiente, primeiro através de instalações ambientais, em seguida a partir do envolvimento do outro nas proposições, em Recife, artistas como Paulo Bruscky se conectavam com o grupo Fluxus e começavam a movimentar uma cena experimental na cidade – a partir da emergência da arte correio e do poema processo que, juntos, vão compor um movimento de poesia visual, por exemplo. No mesmo período, em São Paulo, emergia a poesia concreta, através de sua figura principal Augusto de Campos, em que a experimentação objetual também expandiu as pesquisas de artistas concretos como Waldemar Cordeiro (Popcretos).

A questão do objeto, sua desmaterialização ou rematerialização a partir de outros princípios, começou a se tornar parte fundamental das pesquisas artísticas no Brasil. Além disso, a performance, a inserção do corpo no ambiente (principalmente o urbano e social), a tentativa de inserir o outro, o espectador, como parte integrante do trabalho, a mistura entre linguagens (especialmente poesia e artes visuais – poesia concreta, poema processo), a ideia de antropofagia, foram questões que ebuliram ao mesmo tempo em várias partes do país, criando respostas artísticas distintas, mas todas voltadas a um experimento da arte e de seus limites. Ou seja, o caminho até o conceitualismo, no Brasil, foi distinto daquele percorrido pela Arte Conceitual anglo-americana: não seguiu pesquisas minimalistas, não rebatia um processo icônico baseado no abstracionismo e no formalismo absoluto; tinha mais relação com o concretismo, a Pop Arte, as experiências do Grupo Fluxus e heranças vanguardistas emergidas no próprio contexto do país na década de 1920, como a ideia de antropofagia e a reelaboração de “heranças coloniais”.

Dessa maneira, é possível situar a ideia de Arte Conceitual – da maneira como foi definida por Kosuth, ampliando as considerações de Sol Lewitt – como sendo uma definição historicamente situada. Se refere a um conjunto de produção específico que não contempla uma diversidade de outras práticas as quais também tiveram a precarização do objeto, a emergência do sentido e da linguagem como centro e a ressignificação como características.

Inclusive, no interior das próprias práticas anglo-americanas, algumas foram além do que Kosuth definiu como sendo o ideal da Arte Conceitual. O grupo Fluxus, por exemplo, realizou uma série de práticas que nos fins dos anos 1950 e início dos 1960, retomaram uma série de questões como a da intervenção urbana e inauguraram a arte correio como uma prática artística que já privilegiava o conceito e a palavra como obra artística, além de iniciarem um processo de conexão em rede somente comparável ao que se tem com a internet atualmente. Além disso, houve no período dos anos 1960 um grande movimento de experimentação com fotografia que promovia questionamentos políticos que está classificado e entendido como parte da Arte Conceitual também. É dessa maneira que acredito ser mais adequado se falar em conceitualismo.

É importante lembrar que outros termos poderiam ser empregados para definir esse tipo de prática artística, a exemplo do termo que o crítico Guy Brett usou em alguns de seus escritos, objeto filosófico. Porém, acredito que conceitualismo é uma ideia mais ampla que abarca, além do questionamento objetual, as ações propositivas e corporais, os questionamentos políticos e ideológicos, toda a sorte de projetos realizados pela geração dos anos 1970 no Brasil.

Artur Freitas, quando se refere a conceitualismo, afirma que está se referindo a um termo equivalente ao de Arte Conceitual ampliado. Para ele, “o conceitualismo pode ser considerado como síntese das condições limite das neovanguardas, podendo ser visto como uma postura estética e ideológica extrema diante das convenções da arte, da institucionalização dos juízos e das opressões do capitalismo avançado”.[3]

Essa definição dada por Freitas é interessante para pensar, mais detidamente, a questão do conceitualismo no Brasil. Visto que as práticas dos artistas aqui foram diversas, incluindo um sem-número de meios e linguagens distintas, gerando ações e objetos os mais variados, a ideia proposta por Freitas é ampla o bastante para englobar essa variedade. A questão básica de sua definição refere-se a uma “postura estética e ideológica extrema diante das convenções” e estas eram tanto artística quanto políticas.

A definição de Freitas dialoga diretamente com a da historiadora Mari Carmén Ramirez[4] para a qual o conceitualismo, em sua forma mais radical, pode ser interpretado como um modo de pensar a arte e a sua relação com a sociedade. Ao longo do texto Táticas para Viver da Adversidade, essa ideia ampliada do conceitualismo a ajudará a interpretar as especifidades das práticas conceituais latino-americanas, indo além do que ela chama «reducionismo crasso» das formulações metropolitanas ou das dicotomias comuns centro/periferia. Essa definição ampliada, diz ela, «permitirá, portanto, ver a obra desses artistas não como reflexos, derivações ou mesmo réplicas da arte conceitual central, mas sim como respostas locais às contradições originadas pelo fracasso, após a segunda guerra mundial, dos projetos de modernização e dos modelos artísticos preconizados para a região”.[5]

Para Ramírez, as práticas conceituais realizadas na América Latina tinham como ponto de partida a política e a ideologia para realizar o questionamento radical da arte enquanto instituição. Em suas palavras, “compreender a origem do conceitualismo latino-americano nesses termos, implica apreender a complexa articulação entre as necessidades ex/cêntricas locais e as tendências centrais, uma interação não excêntrica ou formalista, cuja dialética envolve um circuito recíproco de intercâmbio cultural e artístico”.6

Pensando essa relação entre o que Ramírez chama de necessidades ex/cêntricas locais e tendências centrais, pode-se dizer que o que se estabelece é mais um jogo de apropriação e reelaboração do que, necessariamente, uma “imitação” de processos de vanguardas exteriores. E é essa ideia de jogo antropofágico o que a historiadora e crítica Aracy Amaral, no texto Tarsila, Volpi, Oiticica, Meireles, Benjamin, La Sabiduría del Compromiso con el Lugar7 destaca como sendo um traço importante dos artistas modernistas brasileiros.

O foco nesse texto é, basicamente, uma ideia de permanência de uma identidade cultural, ou, pelo menos, de uma miscelânea que faz com que a arte produzida na América Latina, mesmo que a partir de modelos importados (ou impostos colonialmente), possuam um caráter próprio. Um traço distintivo e constitutivo da arte brasileira, por assim dizer. Remontando ao período colonial e as tentativas de “reprodução” de modelos impostos até, pelo menos, o século XIX (período do academicismo e neoclacissismo), Amaral destaca que mesmo a “imitação” não era desprovida de criatividade. Ou seja, a condição de desvantagem em relação à metrópole garantia o traço distintivo e a possibilidade de criação no que produzíamos desde a colônia.

Em outras palavras, para Amaral, a produção artística segue um modelo colonial importado, uma tentativa de mimetização destes que resulta original pelas condições em que se dá a imitação (mão de obra não qualificada, disponibilidade de materiais, etc). No século XIX, período da pintura acadêmica e do ensinamento de modelos da escola neoclássica, a tentativa de copiar esses modelos ainda era forte, assim como a mestiçagem dos resultados dessas tentativas – as quais eram vistas como pintura de segunda categoria pelos europeus.

Com a ascensão do movimento modernista, esse cenário de “importação de modelos” se reconfigura. A questão deixa de se referir a uma passividade (de esperar o que chega) e passa a uma atividade dos artistas, uma busca interessada por saber o que passa nos grandes centros. “Uma receptividade mais aberta diante das novas tendências, um entregar-se mais rápido ao que passa em Paris, Ulm ou Nova York é o ponto mais determinante da alteração de atitude dos artistas modernos e contemporâneos brasileiros frente aos do período colonial ou do século XIX”.[8]

A partir da constatação dessa mudança de comportamento em relação ao modelo exterior, Amaral identifica algo que nomeia como internacionalismo brasileiro, ou seja, “a informação internacionalista transmitida a partir de um referencial local desde o ponto de vista da visualidade ou também como temática”.[9] Para ela, esse movimento já se pode observar desde as obras modernistas dos anos 1920 e, pode-se dizer, permanece vigente até atualmente. A partir desse mote se propõe a analisar as obras de alguns artistas brasileiros, entre eles Cildo Meireles, afirmando que busca observar nas obras destes um denominador comum, o qual seria “o fato de que as obras de seus períodos máximos derivaram da sensibilidade do artista ante o ambiente brasileiro”.[10]

Diante de tudo o que foi dito até o momento, podemos propor um outro percurso brasileiro em direção à arte conceitual o qual passou primeiro pelo neoconcretismo, suas experimentações com o objeto e o ambiente, chegando a fins dos anos 1960, encontrando um processo de recrudescimento da violência política que impactou na geração de artistas que emergia naquele momento e que ocupou os eventos realizados gerando respostas a esse contexto. Como uma consequência da internacionalização da arte que já acontecia naquele período, a produção aqui realizada começa a ser vista no centro e, a partir dele, classificada e, no movimento contrário, os discursos produzidos lá voltam pra cá em forma de ideias. É nesse movimento que Cildo Meireles, por exemplo, passa a se identificar como artista conceitual para escapar a uma etiqueta de artista brasileiro que, para a crítica Cécile Dazord, está “na maior parte das vezes fundada não num conhecimento do contexto histórico e cultural, mas numa abordagem étnica: redutora e estereotipada, postulando uma mentalidade nacional intemporal”.[11]

Levando em consideração todas essas questões relacionadas a uma produção artística local que, ao passo que conectada a uma produção internacional, se desenvolvia a partir de questões próprias, relacionadas, principalmente, ao seu contexto político e institucional, é que vamos observar as práticas do que ficou conhecido como Crítica Institucional operando no cenário brasileiro. Como já é possível perceber, o pano de fundo da época e o processo de produção do conceitualismo no Brasil serão fatores que interferirão na leitura de certos trabalhos onde a crítica à instituição aparece. Após um breve resumo sobre o surgimento do conceito de Crítica Institucional e de algumas práticas assim nomeadas, será possível observar o trabalho Fiat Lux nesse panorama.

Crítica Institucional – práticas

Jogar com as características das instituições, suas limitações e restrições faz parte de uma série de práticas artísticas emergidas após a expansão promovida pelo conceitualismo que ficou conhecida – após o crítico Benjamin Buchloh[12] assim a nomear – como Crítica Institucional. No texto icônico Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions, ao analisar a produção artística realizada entre o período de 1960/1970 nos Estados Unidos, Buchloh avalia que os questionamentos iniciados pelos artistas conceituais, pós-minimalismo e Pop Art, se davam desde uma programática revelação (e questionamento) dos critérios de julgamento e validação do estético, que se torna, aqui, mais uma questão de poder que de gosto. O resultado dessas operações, diz ele, é que a definição da estética se torna, por um lado, matéria de uma convenção linguística e, por outro, função de, tanto um contrato legal, como um discurso institucional (um discurso do poder, mais do que de gosto). Essa erosão trabalha, assim, não somente contra a hegemonia do visual, mas contra a possibilidade de qualquer outro aspecto da experiência estética como autônoma e autossuficiente.

Em outras palavras, Buchloh identifica como artistas, levados pela prática da Arte Conceitual a ultrapassar o objeto artístico em seus questionamentos, chegam a realizar uma prática que é imaterial, discursiva e que começa a se realizar a partir das estruturas linguísticas, discursivas e de sentido que permeiam desde o objeto artístico até a forma de sua exibição. Ao se aterem à desmaterialização do objeto, à sua definição enquanto arte ou não-arte, diz Buchloh, se situam em um nível contratual e administrativo da crítica (Crítica Administrativa), investigando os parâmetros contratuais (no sentido de um contrato social compartilhado) de definição dos objetos de arte. Ao ampliarem o foco dessa investigação para o museu, as galerias, as instituições como o espaço que define e onde acontece o contrato, aí se dá o que ele chama de Crítica Institucional.

É importante ressaltar que, nesse momento, Buchloh não cria um conceito para definir essas práticas. Nesse texto, sem pretender iniciar uma espécie de definição teórica de uma prática artística específica, Buchloh estava apenas analisando, retrospectivamente, a produção de Arte Conceitual nos Estados Unidos. Porém, foi esse ato de classificação (em prol do reconto histórico da produção da Arte Conceitual) que posteriormente definiu essa prática e também o que se convencionou chamar de a primeira geração da Crítica Institucional.

Sendo assim, ficou com os artistas Marcel Broodthaers, Hans Haacke, Daniel Buren, Michael Asher o título de primeira geração da Crítica Institucional e situá-los dentro de uma prática definida que, posteriormente, seria retomada por uma segunda geração, a qual promoveria algumas ampliações. Ou seja, se passou a definir e falar sobre a Crítica Institucional, não apenas como uma ação dentre várias do conceitualismo, mas como uma espécie de prática, como se esta tivesse sido mesmo um movimento de arte. E o que facilitou essa compreensão foram as semelhanças encontradas entre esses artistas: a crítica aos discursos subjacentes às instituições como material de criação artística; a revelação das ficções, ou seja, arbitrariedade discursiva, que permeiam as instituições (naturalizadas em forma de cânones) e seus mecanismos econômicos e políticos; e o questionamento das instituições como lugares privilegiados para a compreensão e fruição da arte.

Em outras palavras, nesse período de surgimento, a Crítica Institucional estadunidense e europeia volta-se, principalmente, para os museus e galerias e vislumbra suas estruturas, discursos e práticas como material de produção artística. Ao mesmo tempo em que se realizam no interior das instituições, as práticas têm como foco a produção de uma fissura nas estruturas discursivas destas. Objetivam o cânone institucional, os agentes de sua reprodução e os efeitos destes sobre artistas e trabalhos. A crítica política e econômica que acontece se dá desde a própria instituição e incidindo nesta.

Um exemplo deste tipo de ação é o trabalho do artista Hans Haacke, MoMA Poll[13] (1970). Durante a mostra Information, uma das maiores exposições de Arte Conceitual realizadas nos anos 1970 no MoMA, Haacke colocou duas urnas de acrílico de votação no espaço expositivo convidando o público a opinar sobre a seguinte questão: “O fato do governador Rockefeller não haver denunciado a política do presidente Nixon na Indochina será uma razão para você não votar nele em novembro?”. Havia um local para o sim e outro para o não e o primeiro foi o que acabou mais cheio. (Fig.1)

Haacke só revelou o conteúdo da pergunta no dia da abertura da exposição. O fato de inquirir sobre a participação do governador Rockefeller em eventos relacionados à guerra do Vietnam era especialmente polêmico, visto a recusa da população ao envolvimento do país no conflito. E a polêmica aumentava ao se recordar que a família Rockefeller foi uma das fundadoras do MoMA, tendo o próprio Nelson sido presidente da instituição por anos.

O irmão de Nelson, David Rockefeller, que era o presidente do MoMA na época de Information, pediu que a obra de Haacke fosse retirada da mostra. Porém John Hightower, diretor naquele período, não seguiu as ordens da presidência, mantendo Momma Poll na exposição (e acabou demitido depois).

O trabalho de Haacke, então, foi exibido tempo suficiente para provocar desestabilizações institucionais importantes (e também para se tornar uma referência de ações nomeadas como Crítica Institucional).       É conhecida a relação do MoMA com os interesses políticos do Estado Estadunidense, atuando como forte via de propaganda ideológica deste, especialmente nos países latino-americanos. Geralmente mascaradas sob a forma de “apoios” culturais, incentivo à produção artística latino-americana, o MoMA, através do seu principal financiador, Rockefeller, realizou uma forte campanha, principalmente no período dos anos 1950, de inserção cultural em países como o Brasil, por exemplo. Incentivava artistas à realizar bolsas e residências nos Estados Unidos, além de financiar a criação de instituições nacionais e eventos como a Bienal de São Paulo. Dessa forma, o impacto da obra de Haacke é tornar evidente e público o envolvimento do MoMA com toda a estrutura política estadunidense, revelando o quão pouco “neutro”, distanciado e imaculado era aquele espaço. As paredes brancas do espaço expositivo diziam muita coisa sobre relações políticas, interesses econômicos e a geopolítica do país. Era preciso fazê-las falar.

Crítica Institucional – a formação do cânone

Se até o momento se disse que Buchloh, por uma necessidade metodológica de situar artistas identificados com a prática da Arte Conceitual em suas diferentes estratégias, cunhou o termo Crítica Institucional, a emergência desse termo como um cânone, ou seja, um conceito definidor de práticas artísticas se deu nos anos 1980, a partir de artistas identificados com essas práticas realizadas nos anos 1960/1970, como reconhece a própria Andrea Fraser.[14] Nesse momento de retomada, a questão da definição do que é Crítica Institucional se tornou mais evidente (e, creio eu, também necessária). A necessidade vinha da própria prática que pedia novos questionamentos sobre o que é instituição – algo já iniciado pelos próprios artistas da primeira geração – e sobre a inserção em outro contexto, agora de abertura para o neoliberalismo, financeirização da arte e processos de estabilização dos novos sujeitos emergidos nas lutas dos anos 1960 na arena política (feministas, movimentos negros e queers).

E foi a partir daí que a reflexão sobre a Crítica Institucional tomou corpo e começou a alargar seu campo para além da instituição como museu, galerias ou colecionadores. Se a primeira geração já se havia dado conta de que os artistas, eles mesmos, são também instituição, participam para sua existência, reprodução ou ruptura, a segunda geração desenvolve de maneira ainda mais ampla essa consciência, tornando o sujeito-artista e sua prática o fundamento da Crítica Institucional. A instituição agora é reconhecida como um conjunto de discursos e práticas que, se por um lado são autônomos (no sentido de que conformam seu próprio mundo), por outro estão em estreita conexão com outras instituições sociais que o modelam e conformam também.

Daí que foi possível para os artistas da segunda geração, como Andrea Fraser, Fred Wilson, Reneé Green – tidos como os mais citados -, iniciarem uma prática de questionamento que incluíam as discussões feministas, o pós-colonialismo, além da própria crítica ao apoio que as artes prestavam à ideologia neoliberal, através dos museus-empresas. Não somente o museu, ou o sistema de arte estão em jogo nas práticas críticas desses artistas, mas posições e definições de sujeitos, uma episteme que subjaz não apenas as relações museológicas que se estabelecem, mas também relações sociais que determinam lugares, seguindo uma hierarquização quase sempre desvantajosa para negros, mulheres, homossexuais. O museu é o lugar de explicitação dessas relações sobre determinadas práticas. A visão do outro (especialmente o negro) como exótico ou selvagem, a posição da mulher como objeto passivo da representação (especialmente de seu corpo) e quase nunca como agente no fazer representativo; enfim, o questionamento do outro como objeto, do museu como lugar do espetáculo e ambiente privilegiado da crescente financeirização da arte (e do artista). A revelação e questionamento de uma episteme colonialista e instrumentalizadora são os marcos críticos dessa nova fase da Crítica Institucional (e que continuam até hoje no trabalho de alguns dos artistas citados, especialmente Andrea Fraser).

Porém, a aceitação dos trabalhos dessa nova geração não foi pacífica. Vários críticos veem nesse momento, uma tentativa de ampliação da Crítica Institucional que acabou por reificá-la mais. E uma dificuldade de aceitação que me parece central nesses críticos é o fato de que essa nova geração modificou o entendimento do que é instituição, tornando-a generalizada. Entender essa noção ampliada, essa noção sociológica da instituição, parece tarefa difícil pra muitos críticos que acabam, por conta disso, sem conseguir enxergar um outro lado da crítica dessa segunda geração em suas práticas e escritos.

Essa ampliação crítica realizada pela Crítica Institucional nos anos 1980 já era identificável no trabalho dos artistas latino-americanos. Retomando as considerações feitas por Ramírez anteriormente, esta autora destaca o papel do questionamento político e ideológico das ações de crítica à instituição existente em vários trabalhos realizados na América Latina. Os contextos de ditadura em vários países, a repressão, o envolvimento do poder econômico com essa situação política e a condição de colonizados eram temas que surgiam em vários trabalhos nesse período. Ou seja, o conceitualismo, aqui, além de assumir um percurso diferente de surgimento, assumiu formas críticas que, mesmo presente em alguns trabalhos nos anos 1960 nos Estados Unidos e Europa, só vieram aparecer mais fortemente nos anos 1980.

Há que se dizer que a Crítica Institucional, em seu momento inicial, já levava em consideração as relações políticas e econômicas que se esquadrinham sob os museus e galerias. Mas, nos anos 1980, essa crítica se amplia para não só desvendar estruturas subjacentes nos museus, mas entendê-los como espaços produtores (e reprodutores) de formas de conhecimento e discursos (ideológicos) que são excludentes, desiguais ou economicamente determinados. Em sua segunda fase, a Crítica Institucional operava não apenas no desvelamento (e também), mas na interferência nos modos de produzir conhecimento existente nos museus. Pensando no caso particular da América Latina, os artistas, antes de desvelar, pretendiam inserir a crítica dentro das instituições. Realizavam ações similares às dos artistas da segunda geração, inserindo a crítica ao contexto mais amplo nas instituições, considerando-as nessa operação. Uma tática de produção da crítica social a partir da instituição e em seu interior.

Crítica Institucional à Brasileira – o caso Fiat Lux

O trabalho O Sermão da Montanha: Fiat Lux[15] (Fig.2), de Cildo Meireles, como muitos dos trabalhos desse artista, já foi bastante analisado e estudado pela historiografia da arte no Brasil. Ele se configura como uma das ações desse artista que promoveram grande impacto no campo da arte brasileiro do período, tornando-se uma importante referência para a compreensão de práticas artísticas críticas em um momento político e cultural conflituoso no país. Diante das várias perguntas já feitas a esse trabalho, acredito que ainda se possa fazer mais uma: como essa obra pode revelar uma prática de Crítica Institucional em um contexto cultural, artístico e político latino-americano e brasileiro?

Fiat Lux é uma obra que, para se realizar, necessitava do espaço da instituição onde está inserido. Realizado pela primeira vez em 25 de abril de 1979, no Centro Cultural Cândido Mendes, Rio de Janeiro, a obra consistia de um cubo formado por 126 mil caixas de fósforos empilhadas, cercada por oito espelhos em cuja superfície se podiam ler oito passagens do sermão da montanha (Mateus 5, 3-10), tudo isso sobre uma espécie de “tapete” de lixa negra. Participavam, ainda, cinco atores os quais atuavam como seguranças que circulavam o tempo todo ao redor da obra, cujos passos sobre a lixa soavam como fósforos sendo riscados (o som dos pés na lixa foi gravado e amplificado). A exposição durava somente 24h.

O projeto original de Fiat Lux data de 1973, mas o trabalho só foi realizado seis anos depois. Três tentativas anteriores de montagem dessa obra foram malogradas. A primeira foi em São Paulo, em 1973, em uma galeria privada, mas foi cancelada três semanas antes da inauguração de maneira inesperada. O caso se repetiu no Rio, em 1975, quando outra galeria privada também cancelou a exposição. Em 1978, a mostra foi novamente cancelada, desta vez por conta de um incêndio no MAM do Rio, onde seria realizada.

As tentativas malsucedidas de expor Fiat Lux já revelam um pouco do impacto institucional que este trabalho provocou. Num momento de ditadura, em que as censuras e os boicotes aconteciam a todo o momento, tornava-se temerário para as galerias privadas apoiar determinados tipos de ações artísticas. Arriscar-se a serem fechadas ou proibidas de trabalhar era algo que algumas não aceitavam muito facilmente. E o medo se justificava pelo que acontecia às instituições que assumiam o risco de realizar exposições com a produção crítica da época: eventos eram cancelados (a exemplo da Bienal da Bahia, fechada em 1968) e mostras eram boicotadas (como a exposição da pré-Bienal de Jovens de Paris, com a representação brasileira que foi impedida de participar do evento, em 1969).

No texto Arte Activista en Brasil durante el AI 5,[16] Maria Iñigo e Yayo Aznar resumem um pouco a esfera repressora que tomava conta do Brasil naquela época e que tornava tão arriscado a promoção de certos eventos artísticos. No final do ano de 1968, aconteceu o que muitos denominam como o golpe dentro do golpe, a homologação do Ato Institucional 5, conhecido como AI 5. O período de vigência deste (até 1979) configurou o momento de maior repressão, violência e esvaziamento cultural no Brasil. Ou seja, a partir daí, entre outras coisas, estava permitida a aplicação de pena de morte a quem cometesse crime de guerra psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva; se institucionalizou a tortura; professores universitários foram precocemente aposentados; e a censura e perseguição dos artistas, promoveu um cenário de desolação cultural com o exílio de vários intelectuais.

Levando em consideração esse contexto institucional-político do Brasil da época, é possível dizer que a obra Fiat Lux é uma prática de Crítica Institucional. E o fator principal para esta afirmação está na necessidade do espaço da galeria que o trabalho exige para acontecer. Quando o artista afirma que somente no interior de uma galeria é possível a realização e compreensão de Fiat Lux, vem à tona também sua pretensão de jogar com os sentidos desse lugar, revelando e pondo em questão compreensões sobre este espaço. A galeria não é um lugar neutro, mas sim um lugar de concentração de tensões que, a qualquer momento, podem explodir, assim como o cubo de caixas de fósforo no centro do espaço expositivo que funciona quase como um reflexo do mesmo. Ou seja, para Cildo Meireles, a galeria não está distante do mundo, não compõe um lugar sacro e, por isso mesmo, deve ser contaminada por toda a sorte de tensões políticas que se desenrolam do seu lado de fora. Quando Meireles leva o explosivo pra dentro da galeria, parece revelar o que tem de explosivo dentro dela mesma também.

As análises deste trabalho realizadas por vários críticos e historiadores da arte, em geral destacam a questão da ação subversiva (ou ativista) de crítica política e sua relação com o contexto da época. É interessante observar que, mesmo considerando a questão do espaço como fundamental para a poética de Meireles, se dá pouco destaque para a relação que Fiat Lux desenvolve com o espaço da galeria onde está inserido.

Um exemplo é a análise de Iñigo e Aznar no texto acima referido sobre este trabalho. Pensando desde um ponto de vista do ativismo artístico, como o título já evidencia bem, os autores destacam como os elementos contidos em Fiat Lux desenvolvem uma alegoria crítica ao momento de repressão. Segundo eles:

A mesma violência e tensão reprimida é o que mostrava Cildo Meireles em sua obra O Sermão da Montanha: Fiat Lux, um trabalho que se mostrou em público, com muita dificuldade, pela primeira vez em 1973 e, pela última, em 1979, momento em que foi definitivamente censurada. Nesta ação/instalação, Cildo Meireles vestiu aos atores como se fossem guarda-costas do presidente ou policiais secertos e os colocou ao redor de um cubo constituído por cento e vinte mil fósforos de uma marca muito conhecida no Brasil: Fiat Lux. A ação criava uma situação densa, concentrada e iminente mediante a qual Meireles estava fazendo uma denúncia às autoridades políticas que, supõe-se, haviam mandado os guarda-costas custodiarem nervosamente todo aquele núcleo de energia concentrada e latente, tão popular, tão potencialmente violenta, sempre a ponto de explodir. […] Mas isso não era tudo. As alusões bíblicas da obra, evidentes no título, continuavam nos espelhos que estavam ao redor e nas paredes cujas superfícies apareciam impressas as bondades de Cristo, uma alusão que, desde o nosso ponto de vista, ligava a obra diretamente à Teologia da Libertação, um movimento teórico fundamentalmente latino-americano que fez toda uma releitura do cristianismo, desde a figura revista de um Cristo trabalhador fundador, nunca entendida como um discurso de apaziguamento, mas como um modelo de ação e transformação do presente.[17]

É interessante observar na análise de Iñigo e Aznar o destaque à referência dos elementos de violência e repressão contidos no trabalho. Relacionando todas as alegorias que Meireles põe em jogo, desde os guarda-costas até os salmos bíblicos escritos nos espelhos que rodeiam o grande cubo de caixas de fósforo, os autores fazem uma leitura contextual de Fiat Lux que, se não incorreta, deixou de fora outras relações importantes, como a necessidade da galeria e do espaço expositivo para a realização do mesmo. A alegoria da explosão precisa também deste elemento para se completar.

Observando outra análise, a do crítico Guy Brett, observa-se o destaque ao fogo como elemento de repressão e emancipação, da ordinariedade do fósforo como objeto precário e a alegoria política e performática produzida pelo trabalho. Mas se, por um lado, o crítico não destaca a relação que o trabalho realiza com o espaço nesse caso, por outro Brett deixa claro que existe na obra de Cildo Meireles uma espécie de princípio do núcleo no espaço (o cubo no centro da galeria é mais uma dessas relações) que Brett encontra semelhança nos Bólides de Hélio Oiticica.

Analisando mais diretamente Fiat Lux, Brett afirma que:

Ainda que evite qualquer posicionamento político e apesar do uso ostensório do ready-made de Duchamp, esta obra teve grandes dificuldades em ser mostrada no Brasil: foi duas vezes anulada antes de, finalmente, ser apresentada durante 24h em 1979. Cildo foi além da denúncia política para produzir uma brilhante alegoria da arte, tão eficaz em seu aspecto performante (a presença opressora de seguranças, aperfeiçoadas até o último detalhe) quanto no uso do objeto. Os espectadores lêem as promessas de Cristo superpostas sos seus próprios reflexos. Neste contexto de consonâncias messiânicas (as Bem-aventuranças garantem aos humildes e oprimidos que eles herdarão a terra) encontra-se uma fonte de energia e de luz que descansa, protegida por oficiais nervosos e aparentemente prestes a incendiar tudo o que os rodeia com um simples esfregar dos pés. Os fósforos podem ser interpretados como um símbolo da energia popular reprimida pelos ricos e poderosos, ou como o símbolo do trabalho do artista. Ambos podem existir e dar frutos no Brasil? O cenário lança, de uma maneira muito ponderada, esta questão que motivou tantos artistas da vanguarda dos anos 1970. Não esperamos nenhuma resposta a não ser em outro nível da alegoria, podendo haver também, uma transformação explosiva.[18]

Mesmo que nessa análise específica de Fiat Lux Brett não tenha ido além dos elementos do trabalho e do o jogo de sentido que realizam, estudando toda a obra de Cildo Meireles, o autor estabelece conexões interessantes deste trabalho com o universo da obra do artista que revela ideias importantes a serem exploradas, como disse anteriormente. Uma dessas questões destacadas pelo crítico refere-se à investigação do espaço realizada pelo artista, como uma herança do neoconcretismo na obra do artista e, para mim, essa é uma chave importante para compreender como esse trabalho pode ser lido desde a chave da Crítica Institucional.

Segundo o crítico, Meireles cita bastantes questões espacias como preocupações principais do seu trabalho. Para Brett, ele não apenas vê o espaço como um complexo, tendo conotações que são físicas, geométricas, históricas, psicológicas, topológicas e antropológicas, mas também trata e trabalha com o espaço como uma realidade inseparável da escala. “Escala é espaço relativo a nós mesmos como humanos, suspendido em algum lugar entre a inimaginável vastidão e a inimaginável pequeneza”.[19]

As questões de escala em Cildo Meireles são frequentes, visto que o artista trabalha com objetos mínimos em ambientes grandes, lembrando a ideia de universo, de pequeneza diante da vastidão, como também elabora instalações grandiosas em que a pequeneza volta como sensação de opressão diante do grande. O jogo paradoxal com o espaço e a relação direta que se estabelece com ele, são uma das questões trabalhadas pelo artista que persistem em vários dos seus trabalhos. E o espaço como significado aparece quando a galeria se torna mais um elemento em ação em Fiat Lux.

O espaço da galeria como elemento ativador da alegoria explosiva de Fiat Lux foi percebida pela pesquisadora Cristina Freire, no texto O Presente-Ausente da arte dos anos 1970. Falando especificamente do trabalho, a autora diz que

Em Sermão da Montanha: Fiat Lux (1973-1979), de Cildo Meireles, o espaço da galeria é lugar da iminência de atrito fatal. São mais de 100 mil caixas de fósforos da marca Fiat Lux amontoadas no centro do espaço da sala e ladeadas por espelhos. Atores vestidos de capangas e guarda-costas protegem o volume (real e simbólico), e o chão recoberto pela lixa preta representa a iminência da explosão e do fogo, que a marca Fiat Lux, fez-se a lux, sugere.[20]

Freire, mesmo que de maneira rápida, ao destacar a galeria como sendo o lugar da iminência de atrito fatal, deixa aberto o flanco para se pensar no trabalho de Meireles a partir do ponto de vista da Crítica Institucional. A alegoria da explosão não tem sentido fora dela. Todo o jogo de tensões colocados por Sermão da Montanha: Fiat Lux só se realiza quando compactado em um espaço simbólico; um espaço que, em sua dimensão menor, também está perpassado e afetado por essas mesmas relações de poder que afetam a esfera pública. E observar esse elemento é importante para entender toda a complexidade da alegoria posta em movimento neste trabalho.

Ao se tentar comparar esse trabalho com outros realizados por artistas europeus e estadunidenses no mesmo período, é possível estabelecer semelhanças com essas práticas. Mas também existem diferenças importantes de contexto (que geraram distintos modus operandi) que é preciso serem analisadas.

No caso de MoMA Poll, trabalho de Haacke aqui brevemente analisado, poderíamos começar observando as semelhanças com Fiat Lux. Pra começar, o trabalho de Haacke tem uma relação direta e necessária com a instituição para se realizar. Assim como em Fiat Lux, antes de querer distanciar-se para criticar, negar para afirmar outra forma de prática artística crítica possível, o trabalho se insere na instituição, a escava desde dentro. Estabelece uma espécie de relação de necessidade com esta para poder existir e operar o seu questionamento.

Porém, a relação de MoMA Poll com a instituição onde está inserida é muito mais simbiótica. Este trabalho existe para esta e nesta instituição. Já o de Cildo Meireles é uma obra que pode ser replicada em outras instituições, pois não lida com questões institucionais tão específicas. Em Fiat Lux, não se trata de uma crítica à galeria y ou z que o expõe. Se trata mais de entender o espaço expositivo, tomá-lo como componente do trabalho e da crítica, inseri-lo em um contexto político, mais do que desnudá-lo.

Observando essa diferença inicial entre Haacke e Meireles, já podemos depreender algumas distinções gerais entre práticas institucionais no Brasil e nos Estados Unidos durante o período dos anos 1970. A primeira delas pode se situar no próprio desenho institucional no campo da arte brasileiro da época. Enquanto na Europa, os museus modernos emergem já no século XIX, acompanhando toda uma série de mudanças epistemológicas que atingiram desde a ciência, passando pela religião e chegando às artes; os Estados Unidos começaram mais tardiamente, no início do século XX a compor as suas instituições, especialmente as de arte moderna. Porém, este país se afirmou como potência econômica muito cedo neste século e suas instituições artísticas foram fortalecidas e estruturadas como suporte para uma expansão imperialista pelo mundo. E é no bojo dessa expansão que algumas das instituições de arte moderna surgem no Brasil.

Sendo assim, com instituições jovens (o Museu de Arte Moderna de São Paulo surge em fins da década de 1940 e a primeira Bienal de São Paulo acontece em 1951), algumas galerias, o circuito institucional do Brasil, especialmente os de arte moderna, ocorriam basicamente através dos eventos: os salões de arte, as bienais e as exposições (algumas delas promovidas pelos próprios artistas), principalmente. Estes eram os grandes validadores e legitimadores da produção artística. Nos anos 1970, há uma certa ampliação de espaços expositivos, instituições e mostras são produzidas com frequência nesse período. Porém, diferente do contexto institucional estadunidense e europeu, fortemente constituído e instituído a ponto de funcionar como instância reguladora, nomeadora, legitimadora e reprodutora de discursos artísticos, a malha institucional brasileira, por sua precariedade, estava por fazer-se. A luta era por constituição, por formação e fortalecimento dessas poucas instituições. Desse modo, a relação que se estabelece entre os artistas e essas instituições se dá em níveis distintos. As vezes, o ataque mira o sistema político mais amplo, tendo a instituição como vitrine. Outras vezes, se questionam os sistemas de seleção e legitimação dos eventos (salões, bienais, etc) e o ataque acontece mais diretamente, voltado para as práticas institucionais definidoras desses esquemas.

Porém, no caso de Fiat Lux, não dá tampouco pra dizer que o artista, simplesmente, usou a galeria como vitrine para uma ação crítica. A operação é muito mais complexa que isso. Mesmo sem fazer um ataque à galeria diretamente, o trabalho estabelece uma relação complexa com o espaço expositivo e o contexto político que traz à tona a partir dos elementos que põe em jogo no trabalho.

Questões de composição são pensadas e calculadas pelo artista que, além do fator performático, também leva em consideração a dimensão da construção estética do objeto (mesmo que seja efêmero). Os cerca de 126 mil fósforos não estão dispostas de forma aleatória. As caixas estão reunidas de maneira a formar um cubo, o qual foi colocado intencionalmente na parte central do espaço expositivo. Como uma ironia ao projeto construtivo brasileiro, Meireles pensa geometricamente seu objeto, o dispõe de maneira exata no centro da galeria, mas tudo está composto por fósforos, material ordinário e precário. Além do mais, a “escultura” é um material explosivo extremamente potente. Junto com todos os outros elementos do trabalho, esta composição se torna objeto de contemplação e medo, de interesse e repulsa por parte do público.

Segundo Meireles, sua ideia era fazer um cubo dentro do cubo (o “cubo branco”, o local da exposição) e essa repetição daria uma impressão de espelhamento de um pelo outro. Além do mais, um cubo inserido em outro parece passar, também, uma sensação de aprisionamento, sufocamento com potencial de explosão. Como afirma Meireles em depoimento ao crítico Felipe Scovino: “para explodir, você, primeiro, tem que compactar, condensar, reprimir. Enfim, você tem que pressionar. Mas a ideia é toda esta: de condensar e levar o exterior para o centro”. [21]

Segundo ainda Scovino, Meireles calculou exatamente a quantidade de fósforo utilizada na composição do cubo e reuniu um número de caixas de fósforos suficiente para explodir a galeria, caso fossem acesos. A iminência dessa explosão é ressaltada pelo artista através dos outros elementos que compõem a mostra: os cinco atores vestidos de segurança que circulam em volta do cubo, caminhando por sobre o tapete de lixa que faz soar cada passo dado sobre si como um fósforo sendo riscado. A amplificação desse som aumenta a angústia e a tensão provocadas pelos atores. Estão acedendo o fósforo? Não estão? Eles estão fazendo a segurança, mas ao mesmo tempo estão provocando o risco de explodir tudo?

Essa composição põe em questão todo um jogo de tensões e medo dentro do espaço da galeria que está para além dela. O cubo de fósforos é uma alegoria do capital (a ideia de acúmulo pelo acúmulo que pode levar à destruição) e é também uma alegoria política bastante forte (a repressão, condensada, que leva à explosão). E todo o trabalho, essa composição objetual e performática, se torna uma metáfora do contexto de medo e insegurança que passa a adentrar o espaço distanciado e neutro da galeria. Os atores que fazem a “segurança” do cubo de fósforos, parecem policiais à paisana e tanto sua postura, olhar, vestimentas, movimentos, parecem provocar ainda mais a sensação de medo. Num período de ditadura, a polícia assusta, provoca pânico, representa o braço armado e cruel do estado repressor que entrou em voga. Porém, esses medos e angústias, quando em grande número e pressionados por uma força grande, tendem à explosão. É preciso reprimir para explodir, disse Meireles. A repressão estava grande. Esperava-se agora pela explosão. (Fig.3)

Este trabalho de Meireles também coloca em questão os limites entre legalidade e ilegalidade. Uma caixa de fósforos é um objeto que possui pólvora, elemento explosivo que possui a potência do perigo e da explosão, mas que em uma quantidade reduzida é permitida e utilizada por todos. Colocadas em grande número reunido, possui um potencial de explosão que pode levar à morte, mas quem legisla sobre a quantidade de caixas de fósforos que alguém pode adquirir? Se a um cidadão comum não é permitido o acesso a artefatos explosivos, a bombas, nem a armas de fogo, quem o impede de comprar fósforos? Que lei proibia o artista de reunir em uma galeria 126 mil caixas de fósforos e pôr em risco a vida das pessoas que fossem ver a mostra? Se está vedado ao cidadão o acesso ao armamento, a produção de uma arma através do acúmulo de elementos ordinários é um ato ilegal ou legal? Segundo Scovino, “o objetivo do artista não é criar um impacto visual pela quantidade, mas usar este fator quantitativo para alterar funções, criar novas metáforas, reverter significados: porque sozinha a caixa de fósforos é um objeto banal e corriqueiro, de tal maneira integrado ao nosso cotidiano”.[22]

Essa ironia colocada em movimento provoca um outro ruído institucional – na instituição jurídica, no conjunto das práticas e discursos que definem o legal e o ilegal no interior do social. Ao transformar algo legal em potencialmente criminoso, Meireles ironiza a arbitrariedade dos sistemas de definição do que é ou não é criminoso. Nesse sentido, esse trabalho realiza uma prática de Crítica Institucional, considerando as dimensões políticas e ideológicas gerais que compõe tanto as instituições sociais quanto as artísticas também, a qual, a partir dos anos 1980, passa a ser realizada pela já mencionada segunda geração. Ampliando a noção de instituição, as ações dos artistas desse período, como já dito, miram não apenas os museus, mas os conjuntos discursivos e de práticas sociais que incidem sobre o social e sobre a arte também. E como já mencionado antes também, quando nos Estados Unidos e Europa essas questões vão ser mais evidenciadas posteriormente, nos anos 1970 as práticas latino-americanas já as colocavam em questão, visto o contexto repressivo político em que estavam mergulhadas.

Ao afirmar isso, não quero dizer que, necessariamente, houve uma vanguarda brasileira (e latino-americana) em relação às questões críticas ou ao entendimento de instituição como os conjuntos de práticas e discursos que conformam, definem e estruturam a vida social geral. Já nos anos 1970, artistas como Hans Haacke se aproximam do pensamento sociológico, especialmente do autor Pierre Bourdieu para refletir sobre o que é instituição e questioná-la. Mas enquanto no período dos anos 1970, a preocupação dos artistas que iniciam a pesquisa institucional em suas práticas se dá em uma dimensão de desvelamento da instituição-arte, de abertura de suas entranhas e estruturas discursivas, da revelação de sua relação com outras instituições sociais, nas práticas latino-americanas, era o engajamento das instituições-arte no questionamento das instituições políticas e econômicas que provocavam a repressão, o medo, a desigualdade e a morte tomavam a dianteira em algumas ações de questionamento institucionais.

O fato de Fiat Lux ter duração de apenas um dia também é importante para analisar o contexto da prática de Crítica Institucional engendrada por esse trabalho. Pensando em outros trabalhos realizados nessa época, a questão da efemeridade e precariedade era evocada como dispositivo crítico das instituições e de sua dimensão de reificação do objeto artístico.

Um trabalho exemplar desse tipo de prática a que me refiro é o realizado em 1973, pelo artista Antonio Manuel. Ele propôs a mostra De 0 a 24 horas, uma exposição que se realizou no suplemento cultural de domingo de O Jornal (periódico carioca da época). Inicialmente pensada para ser realizada no MAM do Rio, a mostra foi cancelada e o artista resolveu, então, fazê-la no jornal, veículo de massa e de grande circulação, no qual, imaginou, ampliaria o alcance e o caráter provisório da mostra. O caráter de crítica à instituição aqui ressaltado fica evidente no texto de abertura do suplemento, citado no trabalho de Artur Freitas, o qual dizia:

Está esgotado o ciclo das artes plásticas em galerias, em museus; se a arte, essencialmente, deve estar voltada para o público, para a massa, só terá sentido se feita através de um veículo de massa, de comunicação de massa. A partir dessa premissa, resolveu ele [Antonio Manuel] cancelar a exposição que deveria ter sido aberta anteontem no Museu de Arte Moderna do Rio, para que um jornal – O JORNAL, no caso – fosse a exposição. Um jornal-exposição. Uma exposição que só dura 24 horas, o tempo que dura um jornal nas bancas. É essa a proposta de Antonio Manuel. Que O JORNAL transmita ao público. Para que ele decida.[23]

Afirmar a precariedade, como ressaltado na frase “uma exposição que só dura 24h, o tempo que dura um jornal nas bancas”, parece algo fundamental ao dispositivo crítico-poético dessa obra. A evidente crítica à instituição como local inadequado à existência, à vivência e à experiência com a arte é ressaltado, dando lugar a um outro dispositivo para realizar a exposição em que o contato desta com o público ocorresse de maneira mais direta e ampla. O museu não é lugar da massa, parece distanciado desta. O jornal, assim, poderia fazer a mediação que a instituição não consegue, ao mesmo tempo que teria a efemeridade inerente a ele (que é descartado após ser lido). O museu reificador, distanciado e estático é negado aqui em prol de um lugar mais dinâmico, amplo e efêmero para a exposição.

A questão da efemeridade está presente em Fiat Lux também, porém, diferente de 0 a 24h, não busca outro meio para realizar a exposição como forma de operar a crítica. Se no caso de Manuel, a censura à mostra no MAM (o seu cancelamento), o levou a realizá-la por outros canais, Meireles insistiu na procura por uma instituição para realizar Fiat Lux. Não teria sentido para este trabalho se realizar em outro lugar. Porque é dentro do espaço expositivo que Meireles quer operar a sua crítica. O espaço institucional é como mais um elemento, e um dos mais importantes, para a compreensão desse trabalho. E o fato de o trabalho durar apenas um dia é outro fator importante no jogo posto em movimento por ele: não se trata de uma exposição artística qualquer, não se trata da mera apresentação de um trabalho artístico, ele é uma ação. E por ser assim, não quer estar preso ao tempo da instituição, não quer se congelar nele. O seu efeito é de impacto e precisa do tempo para funcionar. O tempo curto, efêmero e passageiro da performance.

Os trabalhos de um grupo de artistas brasileiras do período do fim dos anos 1960 e década de 1970 foram denominadas pelo crítico Fernando Morais como arte de guerrilha. Muitas ações e trabalhos desse período primavam pelo acentuado tom político, pela inserção nos sistemas de circulação de informações, pela precariedade e efemeridade. A ação de guerrilha é rápida. Tem que possuir uma intensidade de provocação de ruído forte, pois ela tende a desaparecer sem deixar rastro. Assim são classificados trabalhos como Trouxas, de Artur Barrio (trouxas de carne que eram espalhadas por locais como beiras de rio em Belo Horizonte) ou Inserção em Circuitos Ideológicos – Projeto Cédula, de Cildo Meireles (notas de cruzeiro carimbadas com a pergunta Quem Matou Herzog?). Na arte de guerrilha, a ação é o forte, o jogo sígnico posto em movimento entra em ação no conflito com o sistema oficial de reprodução de informações, mas precisa fazê-lo de modo sorrateiro para não ser eliminado.

No trabalho O Sermão da Montanha: Fiat Lux, pode ser possível encontrar elementos dessa ação de guerrilha segundo a define Moraes. É uma exposição pensada para durar apenas 24h. É uma ação, mais do que a produção de uma escultura permanente, mesmo que elementos escultóricos – especialmente construtivos – sejam explorados no trabalho. É um jogo sígnico de contra-informação, visto os elementos políticos que evoca na relação estabelecida entre as partes do trabalho (os seguranças com cara de polícia à paisana, a insegurança que eles promovem ao andar sobre a lixa, a capacidade explosiva do cubo de fósforo, etc). E se pensarmos na instituição como sendo, também ela, um sistema de circulação de informação, este trabalho é uma intervenção nesse sistema, visto que insere nele, como um ruído, uma série de questionamentos sobre violência, legalidade e ilegalidade, repressão e explosão.

Desse modo, podemos afirmar que Fiat Lux opera um ação de Crítica Institucional à brasileira no sentido de que põe em movimento uma série de elementos contextuais e específicos da produção artística do período e estabelece com a instituição relações que são distintas daquelas estabelecidas por artistas como Hans Haacke, por exemplo. O enfoque ideológico, a tentativa de promover o engajamento da instituição em uma crítica política mais ampla, a efemeridade, todos são elementos marcantes deste trabalho que promove uma Crítica Institucional político-ideológica. Contaminação da instituição mais do que desvelamento de suas estruturas; questionamento de seus elementos ideológicos que coaduna com a tentativa de engajar a instituição na crítica política.

Algumas considerações finais

Usando o caso Fiat Lux como exemplo, tentei, brevemente, entender as possíveis práticas de Crítica Institucional no Brasil. Esse exercício de olhar retrospectivamente para analisar práticas dos anos 1960/1970 que pudessem ser lidas a partir desse conceito me é importante visto que, na análise de trabalhos contemporâneos, essa questão tem reaparecido com força. São artistas emergidos em meados dos anos 1990 que ressignificam práticas realizadas no período anterior, mas também produzem a partir de um contexto artístico bastante diferenciado e ampliado.

Pensar na prática da Crítica Institucional em sua ocorrência no Brasil do período dos anos 1960, momento em que esse conceito emergiu – porque as práticas assim identificadas também surgiram – é importante não só para mediar definições conceituais feitas em contextos distintos do brasileiro, mas também para entender a atualidade destas. Como os artistas brasileiros atualmente discutem a questão institucional em seus trabalhos? Em que medida os contextos histórico e sociais latino-americanos incidem nessas pesquisas contemporâneas? Essas são questões que me coloco na atual investigação de trabalhos realizados a partir dos anos 2000 e que, para tentar minimamente elucidá-las, vi que é preciso retornar à história da arte brasileira e buscar pelos caminhos percorridos pelos artistas daqui e que incidem nas práticas desses artistas mais jovens. E o caso Fiat Lux pode ser esclarecedor de como foram estabelecidas as práticas de Crítica Institucional e como se pode vê-las operando no contexto atual da arte brasileira.

 

 

Notas

[1] Artur Freitas, Contra-arte: Vanguarda, Conceitualismo e Arte de Guerrilha, Curitiba, UFPR, 2007.

[2] Ibidem, p.24.

[3] Ibidem, p.31.

[4] Mari Carmen Ramirez, «Táticas para viver da adversidade: O conceitualismo na América Latina”, Arte & Ensaios, n° 15, 2009, pp. 185-195.

[5] Ibidem, p.186.

[6] Ibidem, p.186.

[7] Aracy Amaral, Tarsila, Volpi, Oiticia, Meireles, Benjamin: La sabiduría del compromiso con el lugar, Valencia, Institut Valencia D’Art Modern, 2011.

[8] Ibidem, p.16.

[9] Ibidem, p.17.

[10] Ibidem, p.17.

[11] Cécile Dazord, “Geração Tranca Ruas”, in: Cildo Meireles [Catalogo], Museé d”Art Moderne Contemporain de Strasbourg, março a maio de 2003.

[12] Benjamin Buchloh, “Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions”, October, Vol. 55, Winter, 1990, pp. 105-143.

[13] Hans Haacke, MoMA Poll: duas urnas de acrílico, células foto-elétricas, dispositivo de contagem, gráfico de registro dos resultados, cartaz com pergunta sobre alguma questão política da época, Museum of Modern Art, Nova York1970.

[14] Andrea Fraser, “Da Crítica das Instituições a uma Instituição da Crítica”, Concinnitas, Río de Janeiro, ano 9, volume 2, número 13, dezembro 2008, p. 179-187.

[15] Cildo Meireles, O Sermão da Montanha: Fiat Lux: superfície de 60 metros quadrados, rodeada por oito espelhos de 1,60m x 1,20m, oito versículos do sermão da montanha (Mateus 5, 3-10), 126 mil caixas de fósforo, lixa negra, cinco atores, 1973-1979,

[16] Maria Iñigo, Yayo Aznar, “Arte Activista em Brasil durante el AI 5 (1968-1979)”,Archives Ouvetres, Santander, 2006. Disponível em: http://hal.archivesouvertes.fr/docs/00/10/40/07/PDF/AznareInigo.pdf

[17] Ibidem, p.10.

[18] Guy Brett, “Cinco Abordagens”, in: Cildo Meireles [Catalogo], Museé d”Art Moderne Contemporain de Strasbourg, março a maio de 2003, p. 110.

[19] Ibidem, p.115.

[20] Cristina Freire, “O Presente-Ausente da arte dos anos 1970”, in: Anos 70: Trajetórias. Iluminuras, São Paulo, Itaú Cultural, 2005.

[21] Felipe Scovino, “Negócio Arriscado: dispositivos pra um circuito da ironia”, Poiésis, n 13, agosto 2009, pp.159-172.

[22] op. cit., p.14.

[23] Freitas, op. cit., p. 162.